Cola cum Fróis

Escrevo pela necessidade de me livrar das palavras | @_dudufrois

sábado, 31 de dezembro de 2016

As perdas de um ano trágico

Dois anos atrás eu escrevia aqui sobre o quão cruel o ano havia sido para a arte. Nesse sentido, 2016 supera. Fácil. Não só com a arte, mas também com o esporte, né? Afinal, o avião que levava o elenco da Chapecoense para a final da Copa Sul-Americana caiu na Colômbia deixando 71 mortos e 6 feridos, entre jogadores, funcionários do clube, profissionais da imprensa e de outras áreas. Tragédia que chocou não só os brasileiros, mas todo o mundo. O Atlético Nacional, bicampeão da Libertadores, ofereceu o título da Sul-Americana à Chape, que naquela madrugada de 29 de novembro ia a sua primeira final internacional.

Esse elenco jamais será esquecido!

Outro triste marco no esporte esse ano foi a morte do pugilista norte-americano Muhammad Ali, o homem do século passado.

- Mas pera aí, e o Pelé?

Pelé é conhecido como o atleta do século passado. O maior do esporte mais popular no mundo. Ninguém jogou como ele. Ali, além de ser o maior nos ringues, era o maior fora deles. Recusou lutar na guerra do Vietnã, por se opor à dominação étnico-racial estadunidense no país. A guerra foi um desastre. Ali foi punido, perdeu dinheiro, ficou um longo período sem lutar, mas não abaixou a cabeça. Tal qual Malcolm X e Martin Luther King, foi um líder negro em um dos lugares mais racistas do mundo. Cassius Clay, como Ali fora batizado, faleceu em 3 de junho.

Se liga nesse clipe do Rashid, do som Quando Éramos Reis, mesmo nome do filme que homenageia Muhammad Ali:



Ainda na linha mundial, 2016 nos levou Prince, David Bowie e, mais recentemente, George Michael. Todos grandes artistas, ídolos do pop. Em terras brasileiras a voz grave de Cauby Peixoto também silenciou este ano.

Silenciou ainda os corpos musicais dos brasileiros Papete e Naná Vasconcelos. Ambos grandes percussionistas, reconhecidos internacionalmente e quase anônimos aqui no país.

Olha só Papete nos dando uma verdadeira aula de percussão e ritmos brasileiros com pandeiro, atabaque e berimbau; no programa Som Brasil, em 1988:




E mais dois mestres se foram neste ano. Mestres na cultura popular. Verdadeiros griots. São mais duas bibliotecas que desaparecem. Uma na arte do cordel, com a ida do paraibano Mestre Azulão, em 12 de abril. Outra na ginga da capoeira, camará, que perdeu o baiano Mestre Ananias em 21 de julho.

Deixo aqui um vídeo de uma roda de capoeira em Minas que explica por si só o título de mestre de Ananias Ferreira:



Nas letras, a perda também foi considerável. Umberto Eco e Ferreira Gullar se foram, mas deixaram seus valiosos escritos. Confesso que ainda não tive muito contato com a literatura do escritor italiano, mas sua obra acadêmica já me despertou o interesse. O maranhense me fascinou pela bela poesia. Nem um pouco pela crítica de arte ou análise política.

No audiovisual, quem nos deixou este ano foi o diretor argentino que vivia no Brasil: Hector Babenco. Ele realizou memoráveis filmes sobre nossa realidade social como Pixote - A lei do mais fraco, e Carandiru.

Cena do filme Carandiru, em que Sabotage contracena com Rita Cadillac

Já na área de produção musical e direção de televisão, Fernando Faro, idealizador do programa Ensaio foi quem faleceu. Pra mim, simplesmente o melhor programa de música da televisão. O músico da vez responde as perguntas (que não são ouvidas pelo telespectador) de Faro em um palco pouco iluminado, onde somente sua voz e (de vez em quando) o som dos instrumentos rompem o silêncio, dando destaque às falas e perfomances do entrevistado ao longo do programa. Genial.

Só que a principal perda mesmo foi a de Mário Sérgio Ferreira: cantor, compositor e cavaquinista do Fundo de Quintal, o grupo que revolucionou as rodas de samba do Rio de Janeiro. Ele era paulista, de alma carioca. Embora fã dos caras, nunca cheguei a encostar numa apresentação do Fundo. 'Quase' fui umas três vezes. Ora pelo preço, ora por compromisso, ora por atraso mesmo. Em uma delas, na Virada Cultural da capital paulista deste ano, em maio. Cheguei no Sesc Pompéia para retirar o ingresso gratuito e fui informado que já estavam esgotados. Peguei ingresso prum outro show qualquer, que eu nem cheguei a ir. Voltei refletindo na oportunidade que eu acabara de perder, pensando seriamente em curtir o show do lado de fora, talvez tentar falar com os caras. Sei lá. É o Fundo de Quintal, né, velho! Não sabia quando teria essa oportunidade novamente. Na semana seguinte, em 29 de maio, num domingo, falecia Mário Sérgio.

Que 2017 seja mais calmaria, né? Menos atentados, menos chacinas, menos tragédias, menos perdas!
E mais força, que é pra gente enfrentar juntos o que vem por aí, porque o show tem que continuar...




Mas iremos achar o tom, 
um acorde com lindo som
e fazer com que fique bom
outra vez o nosso cantar
e a gente vai ser feliz
olha nós outra vez no ar...

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Carona de ida para Pindamonhangaba


De greve no trampo e com o aniversário da coroa batendo na porta, quem atendeu foi aquela saudade. Falei pra ela que ia pegar uma carona por meio de um aplicativo que instalei no celular, que já tava tudo certo, a gente ia sair de Florianópolis no comecinho da tarde de quinta-feira, pra chegar em casa de madrugada. Meio receosa, ela pediu para que eu tomasse cuidado no caminho. Não a desobedeci.

O cara da carona disse que já tava a caminho, e eu, como sempre, não tava pronto. Botei na mala as roupas que tavam a vista, tirei o lixo, fechei a casa e fui, de chinelo, mochila na lomba e mala no braço, me arrastando até a rua paralela à Via Expressa, aqui na quebrada mesmo. No caminho até o ponto de encontro ele me ligou, descrevendo outro local, diferente do que a gente tinha combinado. Na real, tinha ficado até mais perto. Só desci a rua e dobrei a direita. O uninho vinho com placa de Caçapava tava lá, me esperando.

Simpático, ele me cumprimentou e me ajudou apertar as coisas no porta-malas. Partimos. No veículo estavam o cara e a mina dele, no banco da frente; e um outro mano, no banco de trás. A paisagem do litoral catarinense ia contrastando com o mato, as casinhas e estradas. O silêncio do carro me fez refletir bastante. Por que será que tem tanto morro? Deve ser formação rochosa antiga, talvez escudos cristalinos... Como o vidro só abre um tequinho, não sosseguei o olhar. Abençoadas sejam as montanhas e pedreiras. Axé, meu pai. Axé na sua morada.

 Pedra Branca do Araraquara

A tarde ia passado, e nós ainda estávamos de passagem. Saindo de Joinville, iniciando a serra, ouviu-se um estalo vindo do capô, seguido de fumaça. A temperatura do radiador acionou a ventoinha. O motorista encostou o carro e foi averiguar o que havia ocorrido. Aproveitei para abrir uma bolacha, tomar um ar na muretinha do acostamento da rodovia e trocar umas ideias sobre carro velho.

Parece que arrebentou a mangueirinha. O trânsito ficou intenso na subida da serra, principalmente por causa da grande quantidade de caminhões. E a gente ali, aguardando a vinda de um caminhão-guincho, que levou longos minutos até chegar. Devidamente rebocados até o posto de serviços mais próximo, a missão agora era tentar remendar a borracha quebrada. A noite vinha chegando, e a água não parava de vazar. Enchemos o radiador no posto, enchemos também algumas garrafas pet; e pensamos em seguir viagem. Não rolou. A água tava escorrendo toda.

O mecânico daquele posto tava mais preocupado era com o motor dum caminhão de 5 eixos. Sem nenhuma pressa, ele respondia as perguntas do dono do carro. Disse que isso aí era com o borracheiro. Que por sua vez não estava no posto, tinha fechado a oficina e ido até Curitiba. Tivemos que esperar o rapaz voltar ao serviço. E isso demorou um pouco. Comi minhas últimas frutas e fui dar uma banda a pé, pra esfriar a cabeça, parelha com a temperatura do radiador do uninho.

O borracheiro enfim chegou, olhou o problema do carro e logo foi atrás duma peça, lá dentro da oficina. Trocaram a mangueirinha, que por ser de outro modelo continuou vazando água. Só que agora em quantidade bem menor. Eles tentaram vedar o buraco, apertar, remendar e contar com as garrafinhas. Decidimos partir. Já devia tá rolando o jogo do Brasil contra a Argentina, pelas eliminatórias.

la maledita

E assim a gente foi, de posto em posto, aquecendo e esfriando a parada, até parar para tirar um ronco em São José dos Pinhais. Dessa forma a gente esperava o dia amanhecer para resolver o problema do carro à luz natural e em horário comercial. Era um hotelzinho de beira de estrada, simples, e o mais importante, com altos café da manhã! Deu tempo ainda de ver o jornal matinal, saber que a seleção goleou e que tavam rolando protestos aqui no Brasil, nos Estados Unidos...

Lembrei do Trump, do Gean, do Dória... Foi difícil conciliar com minha vontade de chegar à SP. Antes das oito da manhã a gente meteu o pé na estrada novamente. Agora sim, parecia que tava tudo certo. E eu não era o único apressado dali. Ao meu lado, o rapaz que iria ao show do Guns N' Roses contava que tinha reservado um quarto de hostel e queria chegar logo pra deixar as malas em casa e correr pra fila. Ele pretendia estar na porta do Allianz Parque até as 17h, embora o show só começasse mesmo lá pelas 22h30.

Ele era do Pará. Disse não ter muitas saudades de lá, deixando clara a sua vontade de morar no exterior. O casal dos bancos da frente logo deu andamento ao papo. O assunto da viagem tornava-se, vejam só: viagens; mais distantes, é claro, porque a imaginação não tem fronteiras. Ela voa. E a gente deslizava pelo asfalto, até chegar mais um pedágio. As muitas plantações de banana da Serra do Cafezal me lembram das que eu peguei mais cedo na cozinha do hotel. Eu ainda tinha mais sono do que vontade de interagir a respeito das cargas tributárias pelo mundo.

A densa paisagem das moradias e encostas nas periferias de Itapecerica da Serra, Embu das Artes, Cotia, Osasco e Carapicuíba me distraíam do rock que tocava no rádio e da ansiedade do cara que ia ao show. Parece ter distraído também o piloto, que tomou a direção da rodovia Anhanguera e atrasou ainda mais a viagem. Na chegada à marginal do Tietê, aquela recepção paulistana: trânsito! Bastante trânsito. Não bastasse ser sexta-cheira, era véspera de feriado, e horas antes do show de umas bandas mais famosas do mundo.

O mano do lado tava agoniado. Queria chegar logo, mas tava tudo parado. Apontei a ele alguns ônibus de frente verde, que iam pro terminal da Barra Funda, e expliquei que do terminal pro estádio é um, dois. Ele tava de malas, e havia combinado anteriormente com o motorista de ficar na rodoviária do Tietê, pra que ele pudesse ir ao hostel de metrô. A ideia não se concretizou porque a Barra Funda tava bem mais perto, então ,passando a quadra do Águia de Ouro, ali, a gente dobrou à direita. A quantidade de carros na Marquês de São Vicente era bem menor do que a da marginal, o que não significa ausência de trânsito, mas pelo menos fluía.
 
 
 Axel Rose e a multidão

Deixou de fluir novamente quando a gente fez o caminho de volta pra cair na marginal e enfim pegar a via Dutra. Mas demorou, viu? Era começo de tarde quando a gente já tomava sol naquele 'anda e para'. Descobri que o piloto tem uma barbearia e viaja à Floripa quase todo mês, pra namorar né. Muitas músicas, promoções, comerciais e vendedores ambulantes depois, nós pegamos o viaduto de acesso à rodovia. O tempo já tinha até fechado, mas o calor ainda era de 38º. Eu, que não tinha almoçado, queria mesmo era um bom banho.

Durante a conversa do casal, encontrei um esboço do meu sotaque. Ele falava meio caipira, carregando o 'r', com aquelas gírias do mato, coisa nossa, né. Ela era bem manezinha, sabes? Puxava o 's', carregava a entonação das frases e adorava usar o diminutivo. Ao logo do Vale do Paraíba a chuva era intensa. Os motoqueiros faziam do viaduto seu grande provador. Chegávamos em São José dos Campos no horário de pico, por isso nos atrasamos ainda mais. Soube depois que chegou a cair granizo por ali. No final, já exaustos, eles discutiram por que ela não conhecia o Mazzaropi, tadinha. E ele, tanso, não havia lido um poema sequer do Cruz e Souza.

Só que aí a gente já tava contornando o letreiro ali perto da Fapi, na entrada da cidade. Pra mudar a vibe do carro ele me perguntou sobre um possível mercado em Pinda para barbearias "assim, mais chique, né". Eu desconversei, disse que tava tudo caro, que preferia cortar meu cabelo na casa de um parceiro. A chuva ainda caía por sobre o para-brisa do uno quando eu apontei a casinha amarela, em frente a árvore. Ufa! Era aquele o banho que eu queria. E ainda nem era meia-noite...

- Manhêeee, cheguei! ãn ãn

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

31 de Agosto - Dia de Golpe

O dia começou cheio já. De mudança, a bagunça do quarto vai além do que já é natural. No país então, vish!


Do trabalho, pela tevezinha que tem na agência de notícias eu peguei o final da fala da senadora Kátia Abreu, do PMDB, que por sinal é o partido do nosso novo salvador da pátria... digo, nosso presidente da república, novíssimo em Folha. Olhei pra tela meio desconfiado. Não pelo resultado da votação no senado, que derrubou o mandato petista. O que achei curioso foi ver uma empresária e ruralista, inimiga dos movimentos sociais do campo, ser a voz que se levantava em defesa de Dilma. Seria cômico se não fosse trágico.


Contradições à parte, o golpe foi dado. Noticiado e aceito. Aqui na universidade os estudantes pareciam se preocupar mais com o tamanho da fila do restaurante. E eu, com o tamanho do meu cabelo. Ou com a falta de xampu, sei lá. Parei num salão que eu vi no caminho. Receoso, perguntei pros caras do lado de fora:

- É só pra mulher, ou faz corte de homem também?


Os caras riram e pediram para que me sentasse lá dentro, na cadeira em frente ao espelho. Na telinha ao fundo dava pra ver a testa de Temer brilhar. Ele fazia o discurso de posse. Ao lado da televisão do salão, duas moças cuidavam das unhas de uma cliente. A intimidade as levou ao assunto do dia: o novo presidente.

- Ai, ele é um cara inteligente, né? Se veste bem, tem bom gosto. Agora sim!

- Pois é, entende de direito. Sabe falar. Oh, tá vendo? Não é aquela mulher que num sabe nem falar inglês, nem formular uma frase… Meu deus!!!

- Sem contar que ele tem livros publicados. É um intelectual, tipo o outro lá, como que ele chama mesmo?

- Fernando Henrique? Eu sempre votei nele, amiga.

- Eu também, nunca votei no Lula. Picareta. Olha aí no que deu. Eu sabia! SA-BIA!

Paralelo ao diálogo e à transmissão televisiva, Baiano seguia passando a máquina zero alta no meu cabelo. Ele e o rapaz do caixa eram os únicos homens que trabalhavam no lugar. Cansado daquela conversinha mole das peruas, rompi o silêncio do lado mais próximo à rua:

- E aí, cara. Será que esse Temer vai mudar alguma coisa?

Baiano continuou cortando. Olhou pra tv e disse, meio indiferente, voltando a passar a máquininha:

- Mudar não vai, né. Vão continuar roubando. Mas é gente nova, são outros esquemas agora, né?

Lembrei que Michel Temer não era tão novo assim. São 75 anos. E, além disso, o atual presidente já foi secretário de segurança pública de São Paulo, deputado e presidente da câmara, além de vice-presidente do país, ainda que decorativo, por 5 anos. Macaco velho de cargos público, ratão de Brasília.


O barbeiro Baiano desconversou. Perguntou se eu queria que deixasse mais cabelo em cima, falando que se cortasse muito não ia ficar legal. Pensei em retomar o assunto, falar nos possíveis cortes do “novo” governo, que o Brasil não vai ficar legal assim… Apenas concordei movimentando a cabeça pra cima e pra baixo.


Do outro lado do salão, com a chegada de uma senhora que carregava um bebê no colo, acompanhada de um senhorzinho, que logo se sentou; a política voltou à pauta. Bem vestida, de cordão grosso no pescoço, vestido de marca e botas de pelúcia, com certeza super macias, ela chegou falando de crise com um ar irônico. O rapaz que tava no caixa foi lá aumentar o volume para que elas ouvissem Temer esbravejar com firmeza:

- Se nos chamarem de golpista, diga 'Golpista é você que não respeita a Constituição'!

Deu pra ver no reflexo do espelho a empolgação das mulheres.

- Como ele fala bonito, gente! Ahahaha

Baiano diminuiu o tom de voz e cochichou pra mim:

- Bom mesmo era o Lula. Quero ver ter outro igual a ele. Num tem! Que fez mesmo, só ele.

- Ainda mais para a classe mais pobre, né?, continuei

- É verdade. Pode ter o que for contra ele, dizer que é ladrão, mas que ele fez ele fez!


Espero que não desfaçam, pelo menos a democracia, pensei comigo. Do outro lado da cidade, no centro, manifestantes começavam a se reunir em um ato contra o impeachment. A polícia começava a cercar a área. Os trabalhadores começavam a voltar pra casa.


Nenhum direito a menos


- E aí, Eduardo. Tá bom assim?, me perguntou Baiano.


Porra, cara. O país nesta merda toda aí e tu me perguntando se tá bom assim…

- Tá… Tá sim. Ficou chique, cara.  


Percebendo minha fala serena ele ainda tentou me animar:

- Aí é bom que cê pode deixar assim, ou pro lado, ou dependendo também, passar um creminho e botar pra cima, arrepiado, sabe?

- Dependendo do governo, né? hahaha


Por enquanto, meu cabelo tá caído e despenteado. Porém, o pezinho agora tá retinho. A vaidosa semelhança com um Brasil temerário, pós-golpe.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Aqui é Praça da Cascata, tru, não Pokemon

Disseram pra eu tomar cuidado. Andar ligado. Tava sendo enquadro o final de semana todo, porque é que dia de semana seria diferente? Os cara num pode me vê de nave, né?

Dá nada, não. Bagulho doido, mundão girando; a tocha passando e o tempo também. Demorei a reconhecer uns rostos em Pinda. Alguns olhares. Mas a cidade tava a mesma fita. Calma no centro. Moiada na periferia. Até que chegou uma base móvel e começou a enquadrar os carros, na esquina da pracinha da cascata. Parece que eles tão caçando algo.

Quem também tava igualzinho era o André. Continua gente boa, o mesmo jeitão. Lembramo umas história naquele cenário vazio. Não tinha churros. Nem o pipoqueiro, dos queijão enorme, tinha ali mais. Farmácia, padaria e o china eram os únicos pontos de comércio abertos.

Atrás da gente, perto de um busto que tem lá - deve ser do Rui Barbosa, sei lá - o pessoal da rua fumava e bebia corote, quase que escondidos pela copa da árvore. Quem passava na praça nem ganhava nada. E, nos bancos, dois casais, de amigos talvez, riam por detrás das bicicletas encostadas no poste.

Só que tinha uma galeeeera mexendo no celular, vidrada mesmo, mais do que o normal pra uma praça tranquila. Quem passava por ela ia ao chafariz e apontava o bendito aparelho. Eles iam, as vezes sorrindo, sempre distraídos. Nem viam os casais, os moradores de rua, os policias, nem eu, nem o André. Olha que a noite tava agradável, hein.

 A gente seguia na ideia. Os caras seguiam, curiosos, com smartphone em mãos. Isso aconteceu em família, com um casalzinho, com pai e filho, com uns moleques de bike, um casal de moto, além das pessoas que vinham, de carro ou à pé, para o centro da praça. E nem era natal, viu.

A simples quarta de comércio fechado parecia um tanto estranha:

- Ahhhhh, foi hoje que liberou o Pokémon aqui pro Brasil, né?

- Vish, então todo mundo já pode caçar...

- Agora que eu entendi esse caras aí!

- Seloko...



Nóis tava apertado, daí eu fui pra casa caçar o que fazer.

E o pessoal continuou colando lá na praça, grudado na tela. Nem aí com a cidade que dorme cedo. Muito menos com a turma da rua que não costuma dormir.

Tomei cuidado na volta. Quando cheguei vi que o Santos é quem ia dormir líder do Brasileirão. Rá. Esse Peixe aí é difícil de capturar. Nada contra a corrente.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Seu Fróis, minha estrela cadente

Essa noite, um pouco mais cedo, fui dar umas voltas nas ruas do meu bairro. Ficar o dia inteiro dentro de casa não ajuda em nada. Precisava respirar o ar da noite, tirar alguma motivação da lua crescente, ou do céu estrelado do Vale do Paraíba... Num momento de distração desceu diante dos meus olhos uma estrela cadente. Linda e efêmera, eu pisquei e ela passou toda apressada, num sopro, pique a vida da gente.

Dizem que quando se avista uma estrela cadente é que a passagem da terra pro céu foi bem sucedida. Nem me liguei em fazer pedido. Pensei se tudo isso era mesmo real. Ela escorreu tão rápido pelo tecido escuro do firmamento que só consegui lembrar de sorrir.

Meu pai se foi num belo domingo de sol. O céu era azul, azulzinho. Da cor dos teus olhos. E fazia uma friaca tenebrosa... A madrugada de sábado foi a mais gelada de todo o ano. Quem sabe de toda a minha vida. Era dia dos namorados. Dia do terrível massacre que deixou 50 mortos numa boate em Orlando, cidade norte-americana que a gente não chegou a conhecer porque não nos deram o visto. Foi também o dia de derrota do Galo frente ao Cruzeiro, de vitória do Porco sobre o Corinthians (seus dois times: Atlético MG e Palmeiras) e do vexame da seleção brasileira contra o Peru, sendo eliminada da Copa América na fase grupos. Logo ele, que me ensinou a amar o futebol...

Foi sepultado em 13 de junho, dia de Santo Antônio, uma das poucas figuras religiosas do qual era devoto e que carregou consigo no segundo nome desde o batismo lá em 1939.


Efêmeras foram também as voltas que eu e a molecada da rua davam na caçamba da Montana, toda adesivada de fogo. A gente ficava brincando no portão de casa, trocando ideia e esperaaaaando o senhor chegar. Não me recordo da maneira como aquelas voltas no quarteirão começaram, mas parecem agora que duravam somente algumas piscadas de olhos, alguns flashs de adrenalina e risada.

Assim como os dias ao teu lado, que passavam depressa em qualquer lugar que me levasse: na oficina, na feira, na casa dum amigo, num restaurante ou, de vez em quando, lá pra Capital: São Paulo. Tudo era novo, contigo tudo era muito intenso. Já eu, ainda era muito menino pra te acompanhar. E logo antes que as estrelas do céu dessem as caras, você me deixava em casa. As vezes, nem ficava para o café...

Bom, acho que cresci um pouco, ainda que bem distante dos teus 1,80. Não te alcancei nem no tamanho do pé, nem no comprimento das unhas. Quem sabe nos cabelos brancos algum dia desses, né? 

Já até me guiava sozinho pelas constelações, mas sua presença continuava essencial pra minha órbita. Talvez por você ter conhecido e morado em tantos lugares, por suas casas serem sempre repletas de mapas, papéis, chaveiros e pneus; eu quis rodar sozinho meus oitocentos e cinquenta quilômetros. Quis mergulhar em águas que você não havia entrado. Sair do tedioso ritmo lento que o relógio marca aqui ao acompanhar o canto dos galos da vizinhança.

Confesso que meses atrás fiquei um bocado feliz com nossa conversa no telefone que quase chegou aos 10 minutos de duração. Recorde oficial! "Vai ver a distância aproxima mesmo as pessoas". Pura ilusão. O celular não capta emoção, nem conecta seus olhos com os meus. Saí em busca de liberdade, contudo, refém das empresas de transporte coletivo, passei a levar 16 horas para lhe dar um simples abraço de segundos. Até porque a gente nunca teve muita paciência para essas coisas aí, né. 

Efêmero memo, aos moldes da nossa despedida, senão eu perderia o meu ônibus.
Breve, como a última ligação, em que eu senti um desânimozinho na tua voz.
Ligeiro, tal qual a estrela cadente que corria no céu.
Passageiro, tipo os pensamentos que sopram na mente de vez em quando.
Que nem a lágrima que escorre no rosto.
Pois o sentimento, esse sim, é eterno. 

Ê vida, que voa!

Para sempre te amarei,
Wanderley Antônio de Menezes Fróis

terça-feira, 10 de maio de 2016

Espetáculo Percussivo

7 e 30, além de ser o que meu relógio marcava quando cheguei no Teatro Álvares Carvalho, é o nome do projeto que acontece todas as terças no local. O de hoje foi a apresentação do Grupo Livre de Percussão (GLiP), que é integrado por André FM, Diogo Costa, Marco Bicaco e Oswaldo Pomar. São excelentes percussionistas que encheram o tradicional teatro da capital catarinense para levar o público, pelas mãos, é claro, a passear pelos diversos ritmos do país, e os ritmos que vão além da fronteira.

O quarteto começou a apresentação com uma zabumba chamando o pandeiro e o berimbau prum baião, em que o vibrafone também chega pra pontuar melodias do Gonzagão. E logo ganhou a galera. Em seguida, eles fizeram dinâmicas de velocidade e toque de baqueta nos tons que cada músico tinha a sua frente. Um quarteto de pandeiros se formou então, dando leveza e carisma pro espetáculo. Eles conseguiram mostrar com agilidade um pouco das múltiplas possibilidades do instrumento, que tocado em conjunto, sozinho, também produz sonoridade interessante.

cadência para 7 tambores

Trouxeram ao palco outros percussionistas e até uma moça do sapateado, que não deixa de ser percussão, né? Uniram a técnica com o bom-humor nas peças musicais apresentadas. O Grupo de Percussão de Itajaí (GPI) também fez seu show à parte, que entre outras coisas, contou com uma orquestra de cajons. No escuro, e com luvas florescentes, eles tocavam juntos, explorando cada parte da mão e da madeira do instrumento.

Rolou conversa de berimbau, troca de ideia entre repiniques, rodinha de reco-recos, mais pandeirada, bastões musicais e até panela foi batida no palco. Mas não era em protesto à corrupção. O coletivo Abayomi de dança e percussão africana agitou a parte final da apresentação. Djembês e dununs preencheram todo o teatro, fazendo com que a plateia até interagisse com uma palminha animada. Ao fim, uma libertadora comemoração musical ficou visível, e audível, é claro.

Um dos membros do GLiP ainda deu o recado que a Escola Livre de Música de Florianópolis vem lutando para se manter funcionando, com qualidade e gratuidade. O grupo de percussão surgiu no ambiente da própria Escola Livre, numa troca entre alunos e professores. É uma rapazeada que sabe que percussão não é só base, não é só sustentação, e é tão musical quanto qualquer outro naipe. Muito melhor, inclusive, que a última peça que eu havia assistido ali mesmo, sob o lustre redondo do TAC.

A plateia pareceu mesmo convencida de que a percussão é a grande protagonista desse novo espetáculo. Aplaudimos de pé o batuque!

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Melting Party



"Não canta nosso samba/ Não gosta de pandeiro/ Veste um tecido nosso/ Diz que é do estrangeiro/ Fala mal do que é nosso/ diz que é brasileiro..."
Falso Patriota - Geraldo Pereira


Feriadinho maneiro, que começa na quarta, precisa ser celebrado, né. Em clima de impeachment e com saudades dos coroa lá em casa que fui passar uns dias no Vale do Paraíba. Cheguei na quinta, véspera de um evento chamado American Party. No facebook eu vi que tava marcado pra uma tarde, num sítio da zona rural pindamonhangabense. Vi também o alto número de amigos que confirmaram presença. Era gente do bairro, das escolas que estudei, era a minha geração...

Um deles insistiu, e como eu já tava curioso memo, paguei lá uma moeda pra conferir o furdunço. Durante o caminho, na estrada que liga o centro a região do Ribeirão Grande, voltei a me encantar com as montanhas da Serra da Mantiqueira. Fazia um calor gostoso, o sol parecia querer se esconder nas poucas nuvens. Enquanto tentava distinguir na paisagem o que é Pinda e o que é Campos, fui me perguntando o porquê dessa galera fazer uma 'festa americana' na roça.

Chegando lá puseram no meu braço uma pulseira feita de papel plastificado e, depois de certa insistência, ganhei um copinho de plástico de tom vermelho ardente e envernizado. Por dentro é branco. Acho que já vi esse copo em alguma outra festa. O copo era o passaporte de uma festa open bar de vodka nacional querendo ser russa, misturada com energético colorido. Mais tarde chegou a opção in inglish da Catuaba. Refrigerante, água e uns drink's, todos com nome gringo, eram vendidos no caixa. A cerveja era Skol, uma das poucas referências nacionais da festa, e foi comercializada pela bagatela de 4 conto, servida num copinho plástico.

o tal redcup

Logo avistei parceiros de uns dias, que falavam alto e davam rápidas goladas em seus copos. Alguns rostos conhecidos e muitos outros que eu nunca tinha visto na cidade. Ou nunca tivesse reparado. Só que agora o estilo deles parecia diferente. Os bonés tectel de aba curvada dos caras eram minoria em relação aos aba-reta. Marcas famosas, claro, ainda que falsas. Era tênis Mizuno, Nike, DC e Adidas. As camisas da Abrercrombie, Ralf Larren, Lacoste; algumas mais largas, outras que pareciam babylook's, eram combinadas com bermudas tectel coloridas. As correntes de prata e as muitas tatuagens contrastavam para o lado de um aspecto mais brasileiro.

A música era eletrônica desde o começo. Confesso que de cara estranhei bastante a galera da cidade agindo como se estivesse numa festa de filme ambientado em faculdade norte-americana. O cheiro de pasto foi me trazendo, aos poucos, de volta ao interior do Brasil, e eu passei novamente a me distrair com a paisagem. Era fim de uma tarde que o sol ia se pondo timidamente entre o bambuzal e as bananeiras do vizinho. No outro vizinho tinha manga madura. E mais a frente: flores amarelas. Com abstração eu até conseguia escutar algumas galinhas lá no fundo.

Só que mudaram o ritmo da caixa de som, que passou a tocar rap. Voltei a olhar pra festa, conversar, andar e interagir. Muita gente já estava bêbada, e tinham me falado que aquilo ia até "quase meia-noite". A todo tempo passavam apressados os organizadores da festa, vestidos de camiseta roxa escrito "BAE" e óculos de sol. Padrão também se achava nas minas, de cabelo alisado e maquiagem.

Muita fumaça ali fora, mas a maconha parece que é mesmo legalizada só no Colorado. Logo um boom-bap estourou nos falantes, e quando eu já achava que viria mais música em inglês, soltaram um Planet Hemp. Ironicamente os brasileiros da festa americana se animaram. Colei junto na pista e vi, atrás do dj, a bandeira do Brasil, partida no meio, emendada com a outra metade da bandeira dos Estados Unidos da América. Senti vontade de beber catuaba. A palavra BAE também tinha uma bandeira ali. A vontade acabou passando...

Fraternidade Beta

Foi pelas tantas que anunciaram no microfone que enfim dariam início ao beer-pong, jogo esse que meus amigos vinham falando sobre desde o início da festa. Eles se inscreveram no face, querendo ganhar a premiação de uma tatuagem. O jogo funciona numa mesinha estilo ping-pong, inclusive com a mesma bolinha do esporte. O objetivo é acertar com a bola os copinhos vermelho do adversário a frente. Se acertam, os oponentes bebem. Se errar perde a vez. E vice-versa. Até acabarem os copos. Ou dar o tempo de jogo. Ou alguém der perda total.

No fim, quem ganhou, mas deu PT, foi o meu camarada. A empolgação veio mesmo quando começou aquela base de Nego Drama... Mudou o clima, trazendo a rapaziada fronteira a dentro outra vez, ainda que numa batida de fora.

o som que salvou

Lendo no sofá de casa O mistério do Samba, horas antes, eu tava com as ideias do Hermano Vianna ainda na mente. Ele fala da influência dos EUA no samba, seja na parte tecnológica, seja na parte musical. De como a indústria cultural se apropriou da música brasileira e agora vende o mesmo estilo eletronizado no mundo globalizado.

Essa cultura de plástico foi importada recentemente, em meio ao neoliberalismo, e consolidada pela mesma elite que antes trouxe o jazz, o fox-trote, o rock. São gerações de uma classe média fascinada por tudo que é made USA. Desde o fim da Primeira Guerra, quando o país lá de cima enriqueceu e passou a fazer uma política de boa vizinhança, isto é, bom mercado, e despejar seus produtos por aqui.

Em tempos de crise político-futebolística, jogo das eliminatórias da Copa e votação na Câmara dos Deputados, ouvi em Pinda - e na festa, claro - muito papo desanimado com o país, com a seleção, com o agora e o futuro. Só que pouca gente se volta pro passado pra lembrar o que a influência americana causou em 1964. Ainda bem que o RAP ainda tem dessas consciência!

Até porque que não tinha só elite na festa, não. Numa cidade carente de iniciativas de cultura e entretenimento, o povo dança conforme a música (eletrônica), e a juventude frita. Depois subiu no palco uma banda que tocou rock, rap e reggae music. A vibe do som ao vivo melhorou. Ainda mais quando chegou uns mano da cena do rap da cidade. Só que logo em seguida, sem cerimônia, voltou a ecoar música eletrônica na chácara.

- Nóis só que se divertir, tio.

Pois é, tudo isso parece bobeira minha. Paranoia - deixa as pessoas curtirem, pô...

Eu já vinha decepcionado com o evento, já querendo tocar dali quando o som acabou. Ou melhor, foi engolido pelos carros no estacionamento.

Encostaram ali golfão, saveirinho, uno, escortêra e mais algum outro equipado pra tocar funk ~que cheirinho de sexo~. Não demorou muito pra reunir ali no meio uma galera dançando a vontade. Eram várias músicas ao mesmo tempo, que confundia aos ouvidos inebriados. Nada que atrapalhasse o gingado. A festa ganhou sobrevida, e nem eram dez da noite.

Minha esperança também ganhara sobrevida. Só não sei se já é tarde.



sexta-feira, 22 de abril de 2016

Boa ação gera gentileza

Na ida do rolê eu vim atento pra descobrir certinho em qual ponto saltar, porque eu até conheço Moreira César, mas desconhecia a goma do moleque. E o mapa que ele tinha mandado pro meu parceiro, pelo whatsapp, era rasurado e feito a mão, não ajudava muito.

A senhora sentada mais a frente no ônibus se levantara para descer. Ela tentava acionar o botão que sinaliza a parada. Em vão. Decerto estava quebrado. A tia ainda tentou alcançar o cordãozinho do alto, que sinaliza também. Puxei a cordinha para ajudá-la. Ela ouviu o barulho da parada solicitada e veio pra perto de nós, na porta. Saltamos os três.

- Deve ser aqui

- E você já fez a sua boa ação do dia né, disse o mano que tava junto

- E já tem uns dia, viu?

De fato era naquele ponto. Encontramos o moleque e a casa dele. Só que estando de busão, tínhamos que voltar pro ponto antes da meia-noite e meia.

A gente até que tentou. Assim que pisamos na avenida o latão passou acelerado. Já era. A noite nos lembrou que seria longa. E a caminhada mais ainda. Em Pindamonhangaba não tem Madrugadão. Nem rola carona. E de Moreira até o centro tem uns quilômetros...

Conformados com a ideia de andar até os pés doerem, nós partimos. A estrada estava tranquila. Não parecia 1 da manhã de uma sexta-feira.

Eu já me distraía calculando o tempo da rota até em casa.. até que um carro preto diminiu no acostamento e parou ao nosso lado:

- Tão indo pro centro?


Vai ver que a boa ação foi tipo uma gentileza gerando outra.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Minha dose matinal de petróleo


Preciso de ti café
Que é pra acordar
Preciso só porque me fizeram acreditar
Que o dia só se inicia após o primeiro gole
Que a vida é sempre sofrida,
Que num se pode dá mole
- Então engole!

O corpo pede
O copo cede
A boca cede
A boca é sede saciada sem dó
No teu pó
Torrado e moído
Passado e, agora, líquido
Que os meus olhos alegam não mais abrirem sem

E liquidado,
Pois, acordado, da cafeína eu continuo refém
A bocejar de manhã
-Aaaaaaaãnh
Como se chamasse teu nome
O pior é quando tu escutas e vem
E nem sacias minha fome
Só me consome!

Forte... que é pra deixar ligadão
Amargo... pois a vida num é docinha, não
Quente... pra entrar em conformidade com a temperatura do meu coração

Que lhe suplica,
Clama,
Chama,
GRITA...
Assim que o néctar derrama,
Jorras dentro da xícara
Sua dose matinal de petróleo.

terça-feira, 29 de março de 2016

A baga que some

Ele queria parar pra fumar o ultimo rapé que ainda lhe restava. Pudera, viajava desde as três da tarde num sol destes que se dá em domingo - daqueles que são feriado religioso.

Já eram dez. Já tinha lua. E o corpo dele pedia arrego de tanta curva, serra e paisagem de pasto. O ambiente do ônibus lhe causava tédio. Daí foi que ele desceu, de milhão, logo que fizeram uma parada.

Além do chá, ele catou uma sacola de feira com banana, manga e uma faquinha pra descascar. Pra desbaratinar ele deu a volta no barato. Foi parar onde, de noite, os motoristas encostam seus caminhões. E por ali mesmo, dum pico que desse de cara pra lua e pro cruzeiro do sul, se abojou e comeu e fumou. 

A noite era bela, e foi por isso que o mané se empolgou nos devaneios enquanto contemplava o céu estrelado, daqueles que se tem somente na roça. Sua meia-horinha de parada passou depressa, e ele só foi perceber ao olhar pro celular; ato que logo virou uma espécie de tática pros guardinhas do posto não ganharem enquanto ele apagava o incenso.

Era ganja na mão esquerda e navalha na direita. Os mandados foram reto e ele muqueou o verde no tênis preto. Nem laceou o boot. Meteu, com o maior cuidado, o canivete no bolso do lado. Fez que ia sair. Parou.

a famosa ponta-firme

Voltou a olhar o céu. E, antes que viessem lhe perguntar algo, meteu foi o pé. Saiu tropeçando sem olhar pra trás. Nem chegou a ver os seguranças rirem de um sujeito tão desengonçado assim.

Passando em frente ao banheiro, ajeitou a bombeta, cheirou a mão e resolveu dar um tempo por ali. Foi direto pro box, lá no fundo. Abaixou a tampa com violência e botou o pé por cima. Tirou o sapato e nada daquela baga que apagara há pouco. Tirou o outro. Apalpou as meias com pressa e saiu emputecido, com a faca na mão, outra vez sem amarrar o cadarso.

Teve ainda a pachorra de retroceder pelo caminho feito, olhando pro piso cinza do estacionamento, atrás da sagrada ponta. Desistiu, e quando se aproximou do ônibus foi logo apontado pelo motorista que não ficaria mais no volante:

- Era esse aqui ó. De boné!

Ele sorriu, estampando uma mistura de tristeza e sarcasmo nos dentes. Escondeu a faca no bolso. Não antes do novo motorista esboçar uma careta. Entrou e respirou fundo. Se ele havia perdido um fino, eles, colegas de viagem, perdiam tempo. E tempo pra eles é dinheiro.

A velhinha do banco ao lado, logo percebeu a pala que ele deu e perguntou da demora. Ele, guardando a faca na bolsa, disse, subindo o tom, que estava chupando manga. "Muito melhor que esses sanduíche aí'. Os dois riram.

Nosso viajante se revoltou com os olhares, mas o bom humor da senhora curiosa lhe tranquilizou. A paisagem foi se esverdeando, sob o mesmo fundo negro e enluarado. Aos poucos a onda ia voltando. O sono vinha, enfim, chegando.

Aliás, dizem que manga consumida com maconha proporciona boas ondas. Claro, depende do mar. Do vento. Do clima. E o tempo estava ótimo! A lua é quem encheu a maré.

E nem era mais domingo quando, já pescando no banco, é que ele foi se ajeitar. Tirou o boné, inclinou o acento e deixou cair o par de tênis no chão...

Tirou, também, as meias, alguns quilômetros adiante. Ele viu que caiu algo de dentro delas. Logo sacou que era a baga desaparecida. Não conseguiu conter o riso. Muito menos a propagação da pala ao olfato alheio.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Cachaça não é água, não!

Em Minas Gerais, como se sabe, o negócio é queijo e cachaça! Comuns, além das vaquinhas, são os alambiques de pinga artesanal espalhados dentre as infindáveis subidas e descidas. Lá mesmo a cana é plantada, cortada, moída, decantada, fermentada, destilada, armazenada e, claro, degustada. E foi num sítio desses que Seu Zé, o Minerim, foi de carona com um casal de amigos tomar uma.

O sítio na verdade eram duas casinhas de tijolo baiano, com uma horta no meio, e um pequeno canavial. A propriedade era dum tio de Minerim, o Cumpadre. Desses parentes que a gente só visita em feriado. Eles foram num fusca amarelo que era "mais brabo que tudo quanto essas caranga nova que tão rodando por aí". Claro que o Cortês, dono e apaixonado pelo seu fusca, ia puxar a sardinha pro carro. No caminho, entre as estradinhas de terra batida, ele veio contando as aventuras que passaram juntos. Se caísse um pé dágua, era só revestir as rodas com correntes e engatar a primeira que ele ia que só!

Mas o tempo tava firme. O sol brilhava tranquilo no azul céu de Minas. Azul feito o oceano visto de cima. É o azulzinho do mar que faltava aos mineiros.

Os três chegaram por volta das dez da manhã, sendo recebidos com um baita café da manhã preparado mulher do Cumpadre, a Cumadre. Os dois filhos do casal que recebia os visitantes brincavam na terra enquanto eles comiam. Mal terminaram a refeição e Cortês já foi logo querendo provar a tal pinga do lugar. O menino mais velho, todo lambuzado de terra vermelha sorriu e gritou, carregando no sotaque:

- Cuidado, seu moço. Quem daqui bebe com muita sede não se sacia, não, sô.

Eles riram. Menos Cortês, que insistia em conhecer a aguardente. A Cumadre lembrou ao rapaz que ele estava no volante...

- Esse aí dirige até no piloto automático, dona.

Eles riram outra vez. Dessa vez Cortês fez questão de rir de própria piada. O Cumpadre não perdeu tempo e logo serviu às visitas a famosa pinga. E a reação não podia ser outra:

- Uai! Mas isso é melhor que uísque.


Todos repetiram a dose. O Cumpadre quis mostrar a pequena fazenda. Minerim sugeriu para que levasse uma garrafa de cachaça junto ao passeio. Então logo surgiu nas mãos da Cumadre uma pingazinha de banana.

- Docinha!

Foram curtos passos e longos goles. A segunda garrafa se foi e o efeito do álcool era visível nos olhos dos visitantes. Cortês e Minerim até dispensaram o almoço. Queriam experimentar a caninha com sabor de café. O Cumpadre até ameaçou cortar o barato, mas logo cedeu. Não sem antes avisar:

- Essa daí tem que se apreciar, sô. É de poquim em poquim que si acaba. Qui nem a bríbia.

A dupla de amigos, que não era lá muito cristã, não deu ouvidos e continuou a bebericar. Até que o sol fosse embora. E a lua subisse, também com seu brilho. O papo seguiu. Falaram de política, que "tinha que surgir logo outro JK em Brasília". De futebol, que "esse ano a Libertadores era do Galo". E até rolou uma modinha sertaneja no violão da Cumadre. Lógico, regado à aguardente dali da terra.

Na hora de ir embora os dois parceiros trançaram as pernas e trombaram um no outro. Quase foram ao chão. Só não caíram porque um segurou no outro. Agradeceram e se despediram dos donos do sítio. Quiseram até comprar uma nova garrafa. Caíram na gargalhada e no soluço. Só pararam quando Cortês percebeu que havia perdido a chave do carro. Sua mulher havia guardado na bolsa e o reprimiu:

- Nesse estado o senhor não pega no volante!

- Mas eu tenho qui trabaiá amanhã, muié.

- Então o Minerim guia.

Cortês respirou fundo e olhou nos olhos do amigo de longa data:

- Você leva meu possante?

Minerim respondeu de imediato balançando a cabeça pra cima e pra baixo. Só parou quando recebeu as chaves.

Eles entraram no fusca, saíram do sítio e a maior preocupação era acertar o caminho. Já tava bem escuro e os buracos não ajudavam. Mas logo eles caíram na rodovia e puderam andar melhor. Minerim enfim pôde botar a terceira, acelerar, ultrapassar um caminhão de madeira. Meteu a quarta, diminuiu na curva, mas como era descida suave, voltou a acelerar fundo. Na hora de por a quinta o carro engasgou, ele foi olhar pro câmbio e não viu a curva seguinte. Passou reto e só parou na árvore, do outro lado da pista. O carro, que vinha em alta velocidade, ainda virou de lado antes de parar. Amassou por inteiro. Tiveram que quebrar os vidros pra sair de lá de dentro. Mas todos saíram bem.

Com um corte na testa, ainda bastante zonzo da batida e da pinga, Cortês agachou-se e voltou a olhar fundo nos olhos do amigo:

- Porra, você não disse que sabia levar???

Minerim, que estava deitado no chão, vendo o mundo todo girar, ouviu a voz do companheiro e respondeu sorrindo:

- Eu disse que ia levar, sô. Não disse que ia chegar.






quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Pra aliviar a ansiedade...

Se não fosse essa postagem nem pareceria que estamos no auge de cada ano, nos dias em que as pessoas cantarolam nos ônibus, trocam sorrisos nas calçadas, beijos na rua... É SEMANA DE CARNAVAL! E como esse ano vou, pela primeira vez em quase duas décadas de história, passar a festa em terras cariocas, vim deixar essa fita aqui no clima. Não vou jogar confete, nem spray de espuma. Vou jogar samba.

Ou melhor, a Estácio de Sá é quem vai nos jogar samba, domingo, às nove da noite, independente de qualquer canal de televisão. Samba e axé, que andam juntos. São Jorge é o tema. Empunhando a lança do santo guerreiro. A letra é a declaração do devoto para o padroeiro, em primeira pessoa. Só que em conjunto, soa-se coletivo. É a fé, sendo um bagulho extremamente pessoal, transformada numa música de massa, e, o melhor, sem aquele lenga lenga gospel. Uma energia que eu só vejo no samba. Ele conta também a história de Jorge, e já cai num refrão que traz a primeira parte direto da oração, bem forte: estou vestido com as armas de Jorge, meus inimigos não vão me alcançar. Aí o samba volta crescente, fala da criança e da lua, e fecha com comida e batuque, pra escola fazer da avenida seu altar. Como a melodia é gostosa! E a rapaziada da Medalha de Ouro tem mérito nisso. É cada breque difícil que os cara tá mandando, hein... Não é o samba do ano porque os poetas de carnaval capricharam nas composições. Tenho certeza que a escola vai segurar as ponta de abrir o carnaval. Segurar num desfile guerreiro, botem fé.

Daí a União da Ilha do Governador, que deve ser bela como cá, a ilha do presidente; encarna-se no Rio de Janeiro para celebrar as olimpíadas deste ano. E agora com a volta da batida antiga de caixa, bem swingada e gostosa, que até lembrei do meu Camisa. O samba é uma exaltação da cidade maravilhosa para com ela mesma. Uma auto-celebração olímpica, recheada de enaltecimento às belezas naturais do rio, alá antigos carnavais. Pois é, chega mais perto e sente o meu calor. Cristo Redentor alia-se a Zeus, na terra onde o sol é mais dourado. É realmente uma primeira parte bonita, mas o refrão, meio vago, dá uma quebrada no samba que vinha legal. Na segunda parte se fala dos cariocas, dos jogos e, claro, do samba; a melodia também não mantém a mesma pegada do começo. Aí o refrão, de cinco versos, prolonga o samba ainda mais. O jeito vai ser mesmo a Baterilha firmar o desfile na ginga, no batuque e no compasso. Confesso que é uma das faixas do cd desse ano que menos rodou aqui. Mas sempre aguardo a passagem da Ilha, afinal ela não é xodó dos carioca à toa, né. Aquele abraço!

E de Nilópolis, baixada fluminense, é que vem a campeã Beija-Flor. De Nilópolis à Nova Lima, cidade mineira, que entra no enredo da escola esse ano. O Marquês de Sapucaí, nascido lá, e que dá nome a passarela do samba mais famosa do mundo, será homenageado também. A ideia é voltar àquele desfile de carnaval que fala dos tempos de colônia, ou seja, que fala de história. E como o marquês, de fato, encadeia bastante assunto, emoldurando a história, a azul e branca traz um belo samba. No estilo melódico do ano passado, só que com uma levada mais cadenciada. A vida do rapaz então é contada em seus por menores possíveis na primeira parte, para cair num empolgante refrão de exaltação à liberdade. Com o perdão da comparação, mas não como era aquele puta refrão do ano passado. Aí, diz-se que se trata de um homem de real valor, seja lá o que isso signifique, né. Em seguida é feita a conexão com o sambódramo, mas confesso que ainda não compreendi o herdeiro verdadeiro de Ciata, nossa mãe do samba. Na segunda passagem, com A bateria, o samba melhora bastante. Na alegria ou na dor, estou curioso para ver uma Beija-Flor barroca.

De Minas, a gente vai pra SP, colar em Santos, lá no Itororó, beber água. Uma das cidades mais antigas do Brasil vai ser homenageada pela Acadêmicos do Grande Rio. Nesse mar de alegria, o samba, que agora virou propaganda da tele-sena, é naquele modelinho de enredo sobre cidade. E também passa pela história do país, já que o porto de lá ainda é o principal. A primeira parte tem um jogo bonito com a melodia, num falso refrão. E a bateria Invocada ajuda bastante no astral da música, que já é pra cima. Nessa labuta tem aroma de café! - que, aliás, estou saboreando nessa exata tarde nublada. Antes ainda do refrão, uma quebra levanta o clima e, ao mesmo tempo, já chama o bis de dois versos. É saboroso, todo mundo botou fé! Aliás, pode embarcar que o apito do bonde tocou! Pode embarcar que o progresso não pode parar! Na moral, esse breque ali é fera. Aí a batucada volta e a letra já vem falando do Santos Futebol Clube. E dos craques do celeiro. Olé's à parte, o samba se perde por aí. Achei-o meio comprimido, e ele pouco diz. Santos tem muito mais pra se contar. É outra faixa que eu não costumo repetir. Espero que a cidade do meu time do coração seja bem representada por Caxias na avenida, assim como o Amazonas foi dez anos atrás. Santos, maravilha de lugar!

Pernambuco também fora bem representado, esses tempos mesmo, mas com a Mocidade Independente, que hoje canta o Brasil. Louco. Apaixonado. É um enredo de pegada literária que evoca Cervantes ao nosso país. Os moinhos agora são as dificuldades diárias de cada brasileiro. Vai na fé! Música e história também estão inclusos no pacote quixotesco. Um carnaval, digamos que, deveras modernista. Gostei da proposta, achei ousada, assim como a do ano passado. Essa, porém, parece ser muito mais carnavalesca do que o último carnaval da Padre Miguel. Não há de faltar bravura. E a batucada aproveita o refrão do meio pra tirar onda. Gostei daquele breque do agogô. Aliás, Não Existe Mais Quente, que introdução de peso, hein! Vai na fé, meu bom cangaceiro. O Paulo Barros até saiu fora, mas deixou aquele ar de curiosidade pairando ali pela região, numa ofegante epidemia que se chama carnaval. Enfim, sub-celebridades à parte, tenho uma boa expectativa sobre a escola da Zona Oesssste. Há tempos a gente espera a volta da boa e velha Mocidade. E com o Louzada atrás do lápis já temos um bom começo. É hora da estrela que sempre vai brilhar.

Aí, quase de manhã já, a Unidos da Tijuca festeja o solo sagrado em oração. Quase outra "festa no arraiá", possivelmente dos mesmos patrocinadores daquele enredo da Vila, a escola do Borel canta o interior brasileiro. Simplesmente o melhor samba de domingo. A letra é muito bem construída e a linha melódica é toda traçada em cima de rimas estratégicas. A batucada acompanha o alto nível, desde lá da introdução, com cavaco e tamborim, até as bossas da segunda passagem. Séeeloko, dá até vontade de pegar a baqueta e o tamborim aqui. Brota o suor que escorre da enxada, é um dos versos mais bonitos do carnaval. Faz tempo que eu não via a Tijuca com um puta samba. O refrão do meio é extenso, mas nem um pouco cansativo, porque é bem rimado. Já a segunda parte do samba não mantém a mesma pegada do começo, principalmente quando chega no tal oásis de conhecimento. Achei só que faltou uma referência a reforma agrária, pois, convenhamos, é foda quatro mil pessoas festejarem um solo sagrado que tem meia dúzia de donos, assistindo tudo ali de pertinho, no camarote da Sapucaí. Mas o dia vai raiar, e o povo há de cantar feliz.

E assim que esse dia anoitecer a Unidos de Vila Isabel já estará preparada para cantarolar, me emocionar, estando ali na avenida para cantar o político pernambucano Miguel Arraes, o Pai Arraia. E o samba é bom... ahhhh, é tão bom! Martinho, André Diniz, Mart'nália, Arlindo Cruz e Leonal mandaram muito bem. É outra concepção de samba, com três partes, três refrões, e o melhor, sem ficar chato. Longe disso. O samba começa transbordando poesia por olhos rasos d'água. Fala da seca, do sol, e dos carcarás, que voltarão ainda nesse carnaval. Compara o equilíbrio de uma vida sofrida com a estrutura das casinhas de palafita lá do nordeste. E quer um refrão melhor do que dignidade e amor, meu amigo? Dignidade e Amor. É lindo de se ouvir. Aí o samba volta falando de justiça, ideais e esperança. Afinal, liberdade se conquista com educação. Em seguida, sobe o refrão, que também é curtinho, e dá de tirar aquela onda na avenida. Mas isso é só preparação pros versos posteriores que dão aquela levantada na escola de gente aguerrida que defende a tradição do seu lugar. Pra enfim explodir dançando o frevo e a ciranda, no refrão principal. Um samba redondíssimo lá da terra de Noel. Um movimento de cultura popular!

Popular, também, é a malandragem carioca. Salve a malandragem. Salve o povo de fé, me dê licença pra falar desse samba lindo, dos Acadêmicos do Salgueiro. Marcelo Motta, Fred Camacho, Guinga, Getúlio Coelho, Ricardo Fernandes e Francisco Aquino podem lá não ter aqueles nomes engraçados de compositor, mas seguraram a bronca e fizerem um dos grandes sambas deste carnaval. No palco, sob as estrelas, o malandro protagoniza sua ópera na Sapucaí. Com influência lá da peça do Chico Buarque é que o enredo foi montado, mas os atores desse espetáculo são cria lá do morro do Salgueiro. Mais que um projeto social, esse enredo é uma autoafirmação cultural duma classe que sempre foi mal vista, marginalizada; e agora é alvo de flash global. Ou será que vão boicotar a transmissão mesmo? Com ou sem tevê ao vivo do sambódramo o mestre sala das madrugadas vai cortejar sua porta bandeira, a lua. Pra vocês verem o nível de tamanha malandragem, a introdução bonita que a escola fez no cd é sincopada por caixinhas de fósforo. O samba em si tem versos curtos e bem rimados, isso facilita bastante na memorização e, quando menos se espera, se está cantarolando por aí. A Furiosa bateria tá fazendo sua parte de malandro, batuqueiro, segurando um dos melhores ritmos do carnaval. Dos breques ao desenho de tamborim. Me deixo levar! Malandro não diz muita coisa antes do carnaval. Apenas confesso que vou pro RJ pra ver esse samba. E olha que na final tinham outros dois sambas de qualidade. Talvez seja o vento soprando a favor do Andaraí. O couro vai comer.

Do malandro, surge o palhaço. Não com menos malandragem. Mas com mais alegria. Em cena, a arte! E se o Salgueiro se inspirou no Chico, a São Clemente recorda de Zé Ketti para colocar mais de mil palhaços na Sapucaí. A escola vem se mantendo no Grupo Especial há algum tempo, sempre trazendo bons enredos. Também, com Rosa Magalhães na pesquisa, o carnaval só tende a dar certo. O samba que ficou devendo um tantinho. Irônico, não? Num samba sobre palhaços faltar empolgação. Não que seja um samba ruim. Longe disso. Mas a irreverência não funcionou muito bem. Talvez faltasse um bocado de poesia ao homenagear o palhaço. Muito oba-oba pode cansar na avenida. Espero, sinceramente, que seja o melhor desfile da escola da Zona Sul. Potencial pra isso eu sei que tem. Só que, numa noite cujos sambas são lindíssimos, a São Clemente pode acabar ficando pra trás. Que confusão, meu deus do céu! - Deixa a escola desfilar primeiro, rapá! E desfilar linda, pra mostrar pra esse palhaço aqui que tudo o que disse era doce ilusão, deixa. Pode não ser o melhor samba, mas que a escola tem um dos melhores enredos do carnaval, ah tem sim senhor!

E por falar em enredo firmeza, quem vai pedir passagem agora é a águia de Madureira. Ela vai voar longe, altaneira, para viajar, rumo ao infinito. Curioso, né? A Portela começa sua odisséia nas asas da mitologia, toda trabalhada na arquitetura grega. Seu destino, é sem fim. Cruzar o azul que é tudo pra mim. O samba tem uma primeira parte curta e bela, como uma daquelas flores que cabem inteiras na palma da mão. Toda azul. Aí um falso refrão traz a melodia pro povo cantar junto. Ô leva eu, me leva! Dá vontade de pegar carona com a águia. Afinal, sou livre, aonde sonhar eu vou. E o samba vai, ao infinito, sentir lugares tão bonitos, em terras mais distantes me aventurar, sem saber se um dia vou voltar. Ou seja, resumindo a vida de todo viajante porra louca, sem rumo, a vagar o mundão por aí a fora. Chega-se ao refrão do meio, curtinho e simples; para que aí, o samba, que é lindo, se tornar ainda mais do que isso. Abre a janela! Abre, pra ver Samir Trindade, Wanderley Monteiro, Elson Ramires, Lopita 77, Dimenor e Edmar Jr; que acertaram em cheio ao trazer uma levada quase que de partido alto pra essa segunda parte. Samir, aliás, que é autor do samba campeão do carnaval passado, aquele sobre Guiné, da Beija-Flor. A maré tá boa né, rapaz. Ouvir a escola cantando essa parte que fala do ouro, do brilho e, principalmente, do professor Paulo, chega a encher o olhos. Ah, a Portela voltou! E do outro lado alguém pode ver esse amor. Amor a esse samba, que é o próprio mapa da mina, pra achar tesouro, lá na quarta-feira da semana que vem. E, claro, encerra-se a obra em reverência ao samba. A Tabajara do samba também faz seu show a parte. Wantuir e Gilsinho acompanharam-na legal. Abram alas! Afinal, eu sou a águia. Falem de mim quem quiser! Mas é melhor respeitar a Portela, rapá.

Logo após o som do berrante, será a vez da Imperatriz Leopoldinense fazer seu carnaval em clima sertanejo. É outra agremiação que leva o interior do país pra avenida. Pudera, verde é minha raiz. O samba que é tido por muitos como o melhor deste carnaval tem realmente uma construção muito especial. Recheado de poesia ele remonta à vida rural. O galo canta, anuncia um novo dia. Minhas lembranças, marejadas de saudade, trazem à memória o canto dos pássaros e os girassóis da letra. Uma baita ajuda pra imaginação do carnavalesco. Brota até um desejo de se conhecer a Serra Dourada de Goiás. Sou o som do serrado brejeiro! E se um falso refrão já aparecera antes, em outras duas escolas, aqui ele é extremamente bem elaborado, com cinco versos bem rimados, em que a melodia simplesmente baila nas duas estrofes. Prato cheio pra batucada Swing da Leopoldina. Sou matuta, ribeira, caipira. Ao mesmo tempo o samba exalta, em primeira pessoa, o homem do campo, de um pedaço feliz do Brasil. A segunda parte cai já nas festas do interior, mostrando que um enredo sobre Zezé de Camargo e Luciano é muito rico, sim. Fala, inclusive, da trajetória dos dois. E justo nessa parte do samba, no cd do carnaval, a dupla sertaneja começa a cantar os até que chegue o segundo falso refrão: é o amor! Os compositores - Zé Katimba, Adriano Ganso, Jorge do Finge, Moisés Santiago e Aldir Sena - aí, fizeram uma brincadeira com o maior sucesso da dupla. Misturaram à letra um sucesso de rádio dos anos 90, tempos áureos da escola de Ramos (e da dupla goiana), e ainda deixaram a moral do Gresil lá em cima. Claro que sertanejo dá samba bom! A X-9 Paulistana já tinha mostrado isso na década passada. Minha escola na avenida, a paixão da minha vida. E que samba... Pois, sou brasileiro, caipira-pirapora!

Encerrando o carnaval, a última agremiação a ser avaliada, quem vai deixar o gostinho de quero mais na passarela, o último nome a ser lido na apuração a cada quesito... Chegou a garra. Chegou a emoção. Chegou a escola de samba mais querida do planeta. Valeu, Luizito, o samba enredo da Estação Primeira de Mangueira esse ano é lindo, e tenho certeza que cairia perfeitamente na tua voz. A escola fez uma bela homenagem a ele na gravação do cd. E homenageia agora, na avenida, a menina dos olhos de Oyá, Maria Bethânia. Não mexe com ela não, mano. Pois é no dengo da baiana, meu sinhô, que a Mangueira vai passar. Com o axé lá da Bahia é que o samba começa, todo rimadinho. E vai. É Oyá e Oxalá. Bonfim e Maria. Alemão do Cavaco, Almir, Cadu, Lacy de Mangueira, Paulinho Bandolim e Renan Brandão fizeram uma das obras mais belas deste carnaval 2016. Vou no toque do tambor, ô ô. Naquela tradicional caixa rufada, aquela marcação ímpar. Coé cara, vai ter que respeitar meu tamborim! Por que a batucada da escola já mostrou que tá que tá. Deixa o samba me levar... saravá! Daí na volta do samba, depois da virada, quando voa (mais um) carcará, a melodia passa a se soltar. E o tamborim vem junto. No embalo do xirê. Fizeram um puta breque; simples e funcional. Firmo na palma, no pandeiro e na viola! Tudo realmente conspirando pra verde e rosa voltar a fazer um grande carnaval. Vento soprando a favor? Bom, pelo menos esse ano a torre da Sapucaí foi retirada. Explode Coração.

Se bateu curiosidade, os sambas você acha facinho aí no Youtube. Mas bão memo é ouvir ao vivão, junto com aquela batucada!

Sonhei que nessa(s) noite(s) de magia tudo quanto é treta ficava pra trás da linha amarela. Que na passarela branca nada fosse ilusão, mas que aquela realidade durava tanto quanto um sonho bom. Que, essa semana, a passarela seja nossa cama. Grandona e macia. Bora sujar esse lençol e curtir o carnaval aí gente!


sábado, 30 de janeiro de 2016

Um poço de sorte no ar

Meio desolado com os rumos da vida é que busquei me renovar na gélidas águas da cachoeira. A presença de um parceiro em espírito aventureiro aqui na baia influenciou bastante na disposição de caminhar até lá. E a gente foi, entrando em sintonia com o lugar, quanto mais a gente se aproximava do pico, menos barulho de carro no ouvido. Isso trouxe um clima tão tranquilo pra trilha, que logo no comecinho uma audaz borboleta azul parecia nos guiar pelo caminho de pedra e barro.

- Traz sorte, né?

Tentei, em vão, buscar em minha mente o momento que tinha ouvido essa associação esotérica. Talvez quando molequinho, quando diziam que eu era sortudo que só. Talvez eu só tivesse me desencontrado da borboleta azul. Mas agora ela estava ali, sumindo e reaparecendo, bailando dentre as árvores magras e carregadas de folhinhas. Alguns cipós num tom marrom seco ajudavam a compor o cenário daquele voô tranquilo.

imagem meramente provocativa

- Cuidado com a cobra aí!, falou um tiosão, só pra assustar o guri que se agarrava num cipó. Ele riu sozinho.

Essa brincadeira besta levou meus pensamentos. Me perguntei o que realmente eu estava fazendo ali. Vai que, sei lá, surge uma cobra de verdade. Vish, roubou minha brisa. Comecei até a andar mais devagar, como se reparasse minuciosamente nas pedras e folhas da caminhada. Pensava duas vezes antes de botar a mão num tronco.

E foi na segunda indagação interna, logo após a primeira e reflexiva vistoria, que eu brequei o movimento de apoio que ia fazendo num galho da trilha. Estava ali, camuflado. E olha que não era nenhum inseto malandro. Tinha ali, na bifurcação do galho maior em dois galhos de igual proporção, um baseado fechadinho, inteiro, ainda não aceso. Minha reação foi de tentar lembrar quando é que eu tinha sonhado com uma cena parecida. Acho que algumas vezes. Ou será que eu vi isso num filme doidão?

Guardei pra acender num momento especial. E foi já devidamente purificado, ainda com o corpo todo molhado, que a gente iniciou o ritual. A cachoeira tinha umas pedras mais entocadas, que guardavam a mesma energia da vista do poço, um Poção. Repleto de misticismo e tranquilidade, como a dança com a brisa que a borboleta azul voltou a protagonizar, agora girando por entre as grandes pedras do poço. Com uns tímidos raios de sol, os últimos do dia, o azul claro das asas dela se revestia de um dourado marinho. Ou melhor, ribeirinho. Direto da Cachoeira do Poção, aqui na Ilha da Magia.