"Não canta nosso samba/ Não gosta de pandeiro/ Veste um tecido nosso/ Diz que é do estrangeiro/ Fala mal do que é nosso/ diz que é brasileiro..."
Falso Patriota - Geraldo Pereira
Feriadinho maneiro, que começa na quarta, precisa ser celebrado, né. Em clima de impeachment e com saudades dos coroa lá em casa que fui passar uns dias no Vale do Paraíba. Cheguei na quinta, véspera de um evento chamado American Party. No facebook eu vi que tava marcado pra uma tarde, num sítio da zona rural pindamonhangabense. Vi também o alto número de amigos que confirmaram presença. Era gente do bairro, das escolas que estudei, era a minha geração...
Um deles insistiu, e como eu já tava curioso memo, paguei lá uma moeda pra conferir o furdunço. Durante o caminho, na estrada que liga o centro a região do Ribeirão Grande, voltei a me encantar com as montanhas da Serra da Mantiqueira. Fazia um calor gostoso, o sol parecia querer se esconder nas poucas nuvens. Enquanto tentava distinguir na paisagem o que é Pinda e o que é Campos, fui me perguntando o porquê dessa galera fazer uma 'festa americana' na roça.
Chegando lá puseram no meu braço uma pulseira feita de papel plastificado e, depois de certa insistência, ganhei um copinho de plástico de tom vermelho ardente e envernizado. Por dentro é branco. Acho que já vi esse copo em alguma outra festa. O copo era o passaporte de uma festa open bar de vodka nacional querendo ser russa, misturada com energético colorido. Mais tarde chegou a opção in inglish da Catuaba. Refrigerante, água e uns drink's, todos com nome gringo, eram vendidos no caixa. A cerveja era Skol, uma das poucas referências nacionais da festa, e foi comercializada pela bagatela de 4 conto, servida num copinho plástico.
o tal redcup
Logo avistei parceiros de uns dias, que falavam alto e davam rápidas goladas em seus copos. Alguns rostos conhecidos e muitos outros que eu nunca tinha visto na cidade. Ou nunca tivesse reparado. Só que agora o estilo deles parecia diferente. Os bonés tectel de aba curvada dos caras eram minoria em relação aos aba-reta. Marcas famosas, claro, ainda que falsas. Era tênis Mizuno, Nike, DC e Adidas. As camisas da Abrercrombie, Ralf Larren, Lacoste; algumas mais largas, outras que pareciam babylook's, eram combinadas com bermudas tectel coloridas. As correntes de prata e as muitas tatuagens contrastavam para o lado de um aspecto mais brasileiro.
A música era eletrônica desde o começo. Confesso que de cara estranhei bastante a galera da cidade agindo como se estivesse numa festa de filme ambientado em faculdade norte-americana. O cheiro de pasto foi me trazendo, aos poucos, de volta ao interior do Brasil, e eu passei novamente a me distrair com a paisagem. Era fim de uma tarde que o sol ia se pondo timidamente entre o bambuzal e as bananeiras do vizinho. No outro vizinho tinha manga madura. E mais a frente: flores amarelas. Com abstração eu até conseguia escutar algumas galinhas lá no fundo.
Só que mudaram o ritmo da caixa de som, que passou a tocar rap. Voltei a olhar pra festa, conversar, andar e interagir. Muita gente já estava bêbada, e tinham me falado que aquilo ia até "quase meia-noite". A todo tempo passavam apressados os organizadores da festa, vestidos de camiseta roxa escrito "BAE" e óculos de sol. Padrão também se achava nas minas, de cabelo alisado e maquiagem.
Muita fumaça ali fora, mas a maconha parece que é mesmo legalizada só no Colorado. Logo um boom-bap estourou nos falantes, e quando eu já achava que viria mais música em inglês, soltaram um Planet Hemp. Ironicamente os brasileiros da festa americana se animaram. Colei junto na pista e vi, atrás do dj, a bandeira do Brasil, partida no meio, emendada com a outra metade da bandeira dos Estados Unidos da América. Senti vontade de beber catuaba. A palavra BAE também tinha uma bandeira ali. A vontade acabou passando...
Fraternidade Beta
Foi pelas tantas que anunciaram no microfone que enfim dariam início ao beer-pong, jogo esse que meus amigos vinham falando sobre desde o início da festa. Eles se inscreveram no face, querendo ganhar a premiação de uma tatuagem. O jogo funciona numa mesinha estilo ping-pong, inclusive com a mesma bolinha do esporte. O objetivo é acertar com a bola os copinhos vermelho do adversário a frente. Se acertam, os oponentes bebem. Se errar perde a vez. E vice-versa. Até acabarem os copos. Ou dar o tempo de jogo. Ou alguém der perda total.
No fim, quem ganhou, mas deu PT, foi o meu camarada. A empolgação veio mesmo quando começou aquela base de Nego Drama... Mudou o clima, trazendo a rapaziada fronteira a dentro outra vez, ainda que numa batida de fora.
o som que salvou
Lendo no sofá de casa O mistério do Samba, horas antes, eu tava com as ideias do Hermano Vianna ainda na mente. Ele fala da influência dos EUA no samba, seja na parte tecnológica, seja na parte musical. De como a indústria cultural se apropriou da música brasileira e agora vende o mesmo estilo eletronizado no mundo globalizado.
Essa cultura de plástico foi importada recentemente, em meio ao neoliberalismo, e consolidada pela mesma elite que antes trouxe o jazz, o fox-trote, o rock. São gerações de uma classe média fascinada por tudo que é made USA. Desde o fim da Primeira Guerra, quando o país lá de cima enriqueceu e passou a fazer uma política de boa vizinhança, isto é, bom mercado, e despejar seus produtos por aqui.
Em tempos de crise político-futebolística, jogo das eliminatórias da Copa e votação na Câmara dos Deputados, ouvi em Pinda - e na festa, claro - muito papo desanimado com o país, com a seleção, com o agora e o futuro. Só que pouca gente se volta pro passado pra lembrar o que a influência americana causou em 1964. Ainda bem que o RAP ainda tem dessas consciência!
Até porque que não tinha só elite na festa, não. Numa cidade carente de iniciativas de cultura e entretenimento, o povo dança conforme a música (eletrônica), e a juventude frita. Depois subiu no palco uma banda que tocou rock, rap e reggae music. A vibe do som ao vivo melhorou. Ainda mais quando chegou uns mano da cena do rap da cidade. Só que logo em seguida, sem cerimônia, voltou a ecoar música eletrônica na chácara.
- Nóis só que se divertir, tio.
Pois é, tudo isso parece bobeira minha. Paranoia - deixa as pessoas curtirem, pô...
Eu já vinha decepcionado com o evento, já querendo tocar dali quando o som acabou. Ou melhor, foi engolido pelos carros no estacionamento.
Encostaram ali golfão, saveirinho, uno, escortêra e mais algum outro equipado pra tocar funk ~que cheirinho de sexo~. Não demorou muito pra reunir ali no meio uma galera dançando a vontade. Eram várias músicas ao mesmo tempo, que confundia aos ouvidos inebriados. Nada que atrapalhasse o gingado. A festa ganhou sobrevida, e nem eram dez da noite.
Minha esperança também ganhara sobrevida. Só não sei se já é tarde.