Entre a Ilha da Magia e o Mundo Mágico de Oz
Mateus acordou no feriado de 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida, com disposição e uma vontade de não ficar em casa. Para impulsionar a venda de brinquedos e despertar o desejo de consumo nos pequenos, foi instituído também que 12 de outubro é o dia das crianças. Mateus nunca teve o presente que queria. Apesar de não se enxergar mais como uma criança, o menino de 15 anos queria viver um dia diferente da realidade da sua quebrada, um dia especial. Avisou a mãe dizendo que talvez dormisse na casa de um amigo e saiu do alto da Caieira do Saco dos Limões rumo à UFSC, para encontrar Aldair e pegar o skate que tinha conseguido emprestado.
O plano dos caras era reunir geral que tinha confirmado de acampar, partir rumo a Lagoinha do Leste no início da tarde da quinta-feira e ficar por lá até domingo. Mateus nem sabia do combinado. Curtiu a ideia e foi no embalo. Deixou o skate no centro acadêmico de jornalismo e se juntou ao grupo de estudantes que esperava o ônibus para o Rio Tavares. De lá, outro latão até o Pântano do Sul, onde começa a trilha de 2,3 km. Cada um levava consigo uma barraca, e Mateus, o menor da turma, ia carregando as compras feitas no mercadinho.
O caminho estava todo enlameado por conta das chuvas da semana. Mas nada que nos tirasse a empolgação. O moleque ia fazendo a trilha cantando e marcando o ritmo de funk na palma da mão, alternando as batidas: graves com a mão fechada e as agudas com a mão aberta… “E aê, / boca de pelo, / Tu ta pegano a mina que mamou o bonde inteiro”
É o refrão grudento da música dos mc’s Don Juan e Gudan. Mateus, um ano mais novo do que Don Juan, admira o funkeiro e admite que sonha em se tornar um mc reconhecido. Ele frequenta as batalhas de rap que rolam em Florianópolis, mas nunca se inscreveu pra rimar. Ele prefere mesmo o batidão do funk. E logo emenda outra música de putaria no repertório da trilha. Sua mente é rápida, já lança um som após o outro. Vai dos sucessos mais atuais, até as letras do finado mc Daleste. Às vezes, dá uma pausa no funk para cantar alguma do Sabotage ou dos Racionais Mc’s. E quando nenhuma música mais lhe vem à cabeça ele volta para a famigerada ‘boca de pelo’.
Ao chegarem na praia e levantarem acampamento, a rapaziada se dividiu no preparo da comida. Uns foram na caça de madeira, outros buscar água... Acabamos conhecendo outro grupo de amigos acampados ali perto que emprestou panelas e talheres. No cair da noite, eles se juntaram em volta da fogueira para comer, beber, fumar e cantar canções acompanhados do violão. “Na roda da função, mó zueira, tomando vinho seco em volta da fogueira, a noite inteira só contando história, sobre o crime, sobre as tretas na escola…”. Mas é claro que depois tudo virou funk.
Na manhã do dia seguinte Mateus despertou e logo acordou geral. “A gente tá no paraíso!” E saiu correndo pela areia da praia para contemplar os primeiros raios de sol. Ele nasceu no Rio de Janeiro e foi criado em Florianópolis com a mãe e os irmãos. Já estava com saudades do calor, dos dias de verão. Depois que todos fizeram a primeira refeição, perceberam que iriam precisar de mais alimentos. Até porque ainda estavam vindo mais cinco pessoas para se juntar ao acampamento. A solução era fazer a trilha até o Pântano do Sul e voltar ao mercadinho para reabastecer o estoque de mantimentos da galera.
No caminho, durante a trilha, além de cantar os funks, Mateus também contou da vez que foi pego no mercadinho do Campeche com chocolate e chiclete nos bolsos. O segurança o abordou na saída, o conduziu até uma salinha no andar de cima e pediu para que devolvesse a mercadoria furtada. O guri mostrou uma nota de dois reais dizendo que pretendia pagar. O segurança ficou ainda mais bravo e chamou outro, à paisana e armado. Os dois ameaçaram quebrar o moleque caso não devolvesse tudo. Mateus esvaziou os bolsos e os caras ainda quiseram ligar para sua mãe, dar lição de moral e talvez até botar a culpa na criação dela. Ele saiu do mercadinho sem nada, mas tranquilo porque também não precisou assinar nada.
Em sua visão aquilo não foi errado. Se ele tá com vontade e tem de monte na prateleira, a fácil alcance, ué, por que não pegar? O dono dali ganha um dinheiro alto todo dia mesmo. Se o garoto fosse rico e branco, diriam até que é um cleptomaníaco. Errado ele diz que são os que roubam bolsa de mulher, os que tiram coisas dos outros usando a violência. Isso ele não faz. Detesta brigas. Rouba no mercado pois não tem condição de pagar, mas se tem, não pensa duas vezes em esbanjar e gastar o dinheiro todo. Mateus não bebe, mas diz ser viciado em doces. Fuma só Gudang Garam e maconha. Dessa vez ele não precisou esconder nada dos funcionários. Conseguiu comprar um iogurte, graças à vaquinha coletiva dos acampados. E, claro, ajudou seus colegas a trazer o restante das compras.
O guri já é bem grandinho, com quase 1,70m. Para muitos, nem aparenta ser menor de idade. Quando o encontrei na praia ele falava de mulher. Disse-me que ali tava em falta, que só tinha macho. Que Juliana, a gaúcha que chegou no mesmo dia que eu, era uma ‘delicinha’. Até apelidou ela de Xuliana, por causa de uma música do Mc Lan que ele passou a cantar e bater palma. Dei risada e fui com o menino procurar lenha para a fogueira da noite. A chuva ameaçava cair. Dava uma pancada e depois parava. Tivemos que improvisar uma lona para cobrir a madeira e não deixar que ela molhasse. Minha barraca então, sem proteção, já estava encharcada. Mateus me disse que tinha espaço na barraca em que eles estavam dormindo.
Depois do jantar dormimos em quatro, três no colchão de ar, um direto na areia. Ao invés de histórias de terror, Mateus foi contando as vezes em que tinha sido pego, que tinha se dado mal. E ele contava tudo rindo, na maior naturalidade de quem não se vê fazendo mal a ninguém. No último dia na mata Mateus só dizia estar com saudades de andar de skate. Junto com Daniel, marcou de passar em casa assim que chegar no centro e já descer para andar no bowl da pistinha da Costeira. Ele tinha até se esquecido que o skate estava na UFSC.
Subimos até o morro da Coroa e quem tinha bateria no celular bateu a famosa foto lá de cima. Eu e o menor fomos descendo na frente. Ele não quis entrar no mar. Talvez não soubesse nadar. Talvez quisesse mesmo ficar fumando na beira da praia, só observando o quebrar das ondas no mar, sentir a brisa no rosto, conversar com outras pessoas... Dali, reencontramos o grupo para desmontar o acampamento e voltarmos para babilônia antes que anoitecesse.
No dia seguinte, segunda-feira, já no estressante ambiente urbano, dentro do campus da UFSC, um segurança veio questionar a presença de Mateus e seu skate ali. Ele disse que não ia parar de andar, nem de frequentar a universidade. Que tinha amigos ali dentro. O segurança se retirou. Foi chamar reforço. Enquanto isso uma menina pediu para andar no carrinho. Quando a caminhonete da Deseg chegou e desceram dois caras de óculos escuros e coletes já era tarde para esconder o skate no CALJ. Os dois seguranças viram a cena, foram até o local e confiscaram o objeto do moleque naquela enorme caminhonete branca. Mateusinho ia falar o que? Para eles foi como tirar doce da boca de uma criança.
No outro dia encontrei o garoto no CALJ, meio abatido, que me contou a história. Tava com a blusa laranja que eu lhe dei no acampamento. Só que o abatimento logo passou quando ele viu que eu carregava no braço um capacete de motocicleta. Mateus pediu o objeto da minha mão e começou a fazer várias perguntas a respeito de minha humilde Honda CG de 150 cilindradas. Disse também que era dia de Batalha da Central, no Campeche, que já tava quase na hora, que não ia dar tempo se fosse de ônibus e me pediu uma carona. Usei a famosa desculpa de estar sem mais um capacete. Mas o moleque não desiste fácil das coisas que quer. Com a certeza de quem acredita nos encontros do universo, ele disse que ia arranjar um capacete e só falou pra eu vir com ele.
Sem saber direito o que ele iria fazer eu fui seguindo-o pela universidade. E pra piorar, aquele horário da noite eu já não conhecia ninguém que viesse de moto. “Ah, tem o Van Diesel ali do Básico!” A gente foi lá e ele chamou o menor de azarado, que semana passada o rapaz tinha esquecido um capacete em cima de uma mesa e só tinha vindo buscar ontem. Mateus não gostou do adjetivo que lhe foi dado, assim como não gosta de ser chamado de menor. Virou pra mim e disse: onde tá sua moto, feio? Vamo lá!
A gente foi caminhando até o CDS, no caminho apenas carros e pedestres. Eu vinha lhe dizendo que se houvesse alguém que só um trabalhador noturno nos emprestaria um capacete aquele horário. Ele abordou um guardinha de amarelo, que disse não ter moto, nem saber de alguém que tenha, mas se mostrou curioso com a história. Vimos que ele também não nos ajudaria, até que passamos pelo centro acadêmico de educação física, onde rolava uma reunião dos professores de atletismo, no piso superior. Subimos e ficando olhando para as pessoas até que elas nos notassem.
Vinha vindo em nossa direção uma moça. Explicamos para ela a história de ir até o Campeche de moto. Só omitimos a parte da batalha. Ela chamou outra moça, com um capacete nos braços, que chegou dizendo estar de saída. Eu confesso que nesse momento já tinha perdido as expectativas, mas o Mateus não, e foi desenrolando com a moça até ela chamar o namorado. Contamos a história para ele também, que dá aulas a crianças e adolescentes na pista de atletismo. Ele abraçou a ideia, confessou ter outro capacete no baú da moto e de quebra chamou Mateus para treinar com ele. O menor só pegou o objeto emprestado e agradeceu. Eu disse que em uma hora estaria de volta ali para devolver o capacete.
Quando chegamos até a moto, estacionada próxima da saída de pedestres do Pantanal, fomos abordados por outros dois guardinhas de amarelo, que nos fizeram várias perguntas e justificaram a abordagem porque éramos ‘suspeitos’. Ficaram ali até a gente sair. No caminho, antes de chegarmos na via Expressa Sul, ele veio me contando que sabia pilotar. Depois, passou a cantar os funks. Chegando no Campeche, insistiu para conduzir. Eu neguei, falei da polícia, que a moto tava com a bateria fraca, que a gente tava quase chegando…
A batalha de conhecimento já estava nas semi-finais quando a gente parou ali, nem dava mais tempo de se inscrever. Ele comprimentou os conhecidos e já foi logo pedindo pros caras uma moeda pro gudang’zin. Ao conseguir R$1,50 a gente foi até a venda, ascendeu e, antes que o cigarro chegasse no filtro, ele me fez um pedido que me deixou desconcertado: pilotar a moto no caminho de terra batida que tem atrás da pracinha onde rolava a batalha de rap.
Perguntei se ele sabia ligar no pé. Ele já subiu e foi tentando. Ligou. Nem precisou do afogador. Acelerou no neutro, olhou pra mim, botou em primeira marcha e partiu. Passou pra segunda. Lá na frente, pra terceira e voltou. Pediu pra andar na pista. Eu neguei, é claro. Argumentei lembrando-lhe de ter um posto policial bem ao lado. Mateus queria brincar um pouco mais nesse brinquedo de gente adulta. Foi até o fim da estradinha e deixou morrer a moto. Penou pra ligar, mas ligou. Veio vindo devagarinho, estacionou onde estava e falou: “bora ver a batalha, feio!”
A final de conhecimento rolou e quem ganhou foi uma mina. Colocaram um som pra tocar, eu olhei a hora e lembrei do cara que emprestou o capacete pra gente. Já ia dar uma hora. Perguntei ao Mateus se ele ficaria pra batalha de sangue. Não. Vamos embora. Na saída ele pediu pra levar de novo. Eu pensei duas vezes e disse para ele que se fossemos pegos a moto iria pro pátio e quem ia se foder era eu. Que não ia ter dinheiro pra tirar, pagar o guincho, essas coisas. Ele não gostou muito, mas foi atrás cantando as músicas do mc Rodson enquanto eu pilotava e fazia a batida de funk com a mão esquerda no tanque de gasolina.
O farol apagou, mas o caminho do Rio Tavares é bem iluminado. Tranquilo. Minha lanterna devia estar funcionando apenas uma fase. Levantei a viseira para enxergar melhor as duas pistas. O ruim são as tartaruguinhas que limitam a mudança de faixa. Permaneci na direita quando vi uma viatura da polícia toda apagada na esquina, pronta para virar. Diminuí a velocidade. Na lombada, passei o carro da frente enquanto o menor me dizia: “É a BOPE! É a BOPE!”. Conferi se meu rosário estava comigo e respirei fundo. Olhei no retrovisor e o carro que eu havia ultrapassado não estava mais lá. Só vi o farol alto dos policiais, que ainda ligaram o giroflex enquanto eu parava a moto na frente do posto de gasolina para tomar o famoso enquadro.
Não deu em nada. Ninguém tinha flagrante, a moto tá certinha, minha carteira também. Mas os caras do Batalhão de Operações Especiais são chatos. Viram que o Mateus tinha passagens por furto de mercado e já começaram a interrogá-lo. Ele falou que roubava chocolate escondido. Mas que agora não rouba mais. Advertência, reparo de danos, prestação de serviços... tudo isso ele tinha cumprido, conforme consta no ECA (Estatuto da Criança e Adolescente). Mas o menor nunca fez parte das estatísticas dos mais de 20 mil adolescentes presos. Aquele dia ele me contou que até teve medo de que fosse pego. Perguntaram onde ele morava, brincaram com o frente do tráfico na comunidade dele, disseram que não iria durar muito.
Foram 15 minutos de perguntas, mão na cabeça e perna aberta. Ainda me fizeram ligar a moto e olhar de perto o farol dela. Um deles dizia com a cara fechada que eu poderia atropelar uma família. Nem discuti. Ouvi aquilo olhando para o fuzil que estava sobre o tórax do outro policial, me perguntando se precisava de tudo isso mesmo. Na volta, Mateusinho me abraçou. Deu risada, agradeceu por não estar com nada. Depois voltou a cantar funk, só que ao invés de putaria, ele cantava agora proibidão: “é que o crime não é o creme, se tu não deves não treme, eu to cansado de kaô, ô, ô, ô”. Ao deixar ele ali no pé da Serrinha, antes de voltar pra minha casa, eu falei: “vê se te cuida ein, mano”. Ele me falou a mesma coisa. Apertou minha mão e me pediu uma moeda pra pegar um Gundang ali no boteco.