Cola cum Fróis

Escrevo pela necessidade de me livrar das palavras | @_dudufrois

domingo, 23 de dezembro de 2018

Tirando o doce da criança

Entre a Ilha da Magia e o Mundo Mágico de Oz


Mateus acordou no feriado de 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida, com disposição e uma vontade de não ficar em casa. Para impulsionar a venda de brinquedos e despertar o desejo de consumo nos pequenos, foi instituído também que 12 de outubro é o dia das crianças. Mateus nunca teve o presente que queria. Apesar de não se enxergar mais como uma criança, o menino de 15 anos queria viver um dia diferente da realidade da sua quebrada, um dia especial. Avisou a mãe dizendo que talvez dormisse na casa de um amigo e saiu do alto da Caieira do Saco dos Limões rumo à UFSC, para encontrar Aldair e pegar o skate que tinha conseguido emprestado.


O plano dos caras era reunir geral que tinha confirmado de acampar, partir rumo a Lagoinha do Leste no início da tarde da quinta-feira e ficar por lá até domingo. Mateus nem sabia do combinado. Curtiu a ideia e foi no embalo. Deixou o skate no centro acadêmico de jornalismo e se juntou ao grupo de estudantes que esperava o ônibus para o Rio Tavares. De lá, outro latão até o Pântano do Sul, onde começa a trilha de 2,3 km. Cada um levava consigo uma barraca, e Mateus, o menor da turma, ia carregando as compras feitas no mercadinho.


O caminho estava todo enlameado por conta das chuvas da semana. Mas nada que nos tirasse a empolgação. O moleque ia fazendo a trilha cantando e marcando o ritmo de funk na palma da mão, alternando as batidas: graves com a mão fechada e as agudas com a mão aberta… “E aê, / boca de pelo, / Tu ta pegano a mina que mamou o bonde inteiro”


É o refrão grudento da música dos mc’s Don Juan e Gudan. Mateus, um ano mais novo do que Don Juan, admira o funkeiro e admite que sonha em se tornar um mc reconhecido. Ele frequenta as batalhas de rap que rolam em Florianópolis, mas nunca se inscreveu pra rimar. Ele prefere mesmo o batidão do funk. E logo emenda outra música de putaria no repertório da trilha. Sua mente é rápida, já lança um som após o outro. Vai dos sucessos mais atuais, até as letras do finado mc Daleste. Às vezes, dá uma pausa no funk para cantar alguma do Sabotage ou dos Racionais Mc’s. E quando nenhuma música mais lhe vem à cabeça ele volta para a famigerada ‘boca de pelo’.


Ao chegarem na praia e levantarem acampamento, a rapaziada se dividiu no preparo da comida. Uns foram na caça de madeira, outros buscar água... Acabamos conhecendo outro grupo de amigos acampados ali perto que emprestou panelas e talheres. No cair da noite, eles se juntaram em volta da fogueira para comer, beber, fumar e cantar canções acompanhados do violão. “Na roda da função, mó zueira, tomando vinho seco em volta da fogueira, a noite inteira só contando história, sobre o crime, sobre as tretas na escola…”. Mas é claro que depois tudo virou funk.


Na manhã do dia seguinte Mateus despertou e logo acordou geral. “A gente tá no paraíso!” E saiu correndo pela areia da praia para contemplar os primeiros raios de sol. Ele nasceu no Rio de Janeiro e foi criado em Florianópolis com a mãe e os irmãos. Já estava com saudades do calor, dos dias de verão. Depois que todos fizeram a primeira refeição, perceberam que iriam precisar de mais alimentos. Até porque ainda estavam vindo mais cinco pessoas para se juntar ao acampamento. A solução era fazer a trilha até o Pântano do Sul e voltar ao mercadinho para reabastecer o estoque de mantimentos da galera.


No caminho, durante a trilha, além de cantar os funks, Mateus também contou da vez que foi pego no mercadinho do Campeche com chocolate e chiclete nos bolsos. O segurança o abordou na saída, o conduziu até uma salinha no andar de cima e pediu para que devolvesse a mercadoria furtada. O guri mostrou uma nota de dois reais dizendo que pretendia pagar. O segurança ficou ainda mais bravo e chamou outro, à paisana e armado. Os dois ameaçaram quebrar o moleque caso não devolvesse tudo. Mateus esvaziou os bolsos e os caras ainda quiseram ligar para sua mãe, dar lição de moral e talvez até botar a culpa na criação dela. Ele saiu do mercadinho sem nada, mas tranquilo porque também não precisou assinar nada.


Em sua visão aquilo não foi errado. Se ele tá com vontade e tem de monte na prateleira, a fácil alcance, ué, por que não pegar? O dono dali ganha um dinheiro alto todo dia mesmo. Se o garoto fosse rico e branco, diriam até que é um cleptomaníaco. Errado ele diz que são os que roubam bolsa de mulher, os que tiram coisas dos outros usando a violência. Isso ele não faz. Detesta brigas. Rouba no mercado pois não tem condição de pagar, mas se tem, não pensa duas vezes em esbanjar e gastar o dinheiro todo. Mateus não bebe, mas diz ser viciado em doces. Fuma só Gudang Garam e maconha. Dessa vez ele não precisou esconder nada dos funcionários. Conseguiu comprar um iogurte, graças à vaquinha coletiva dos acampados. E, claro, ajudou seus colegas a trazer o restante das compras.


O guri já é bem grandinho, com quase 1,70m. Para muitos, nem aparenta ser menor de idade. Quando o encontrei na praia ele falava de mulher. Disse-me que ali tava em falta, que só tinha macho. Que Juliana, a gaúcha que chegou no mesmo dia que eu, era uma ‘delicinha’. Até apelidou ela de Xuliana, por causa de uma música do Mc Lan que ele passou a cantar e bater palma. Dei risada e fui com o menino procurar lenha para a fogueira da noite. A chuva ameaçava cair. Dava uma pancada e depois parava. Tivemos que improvisar uma lona para cobrir a madeira e não deixar que ela molhasse. Minha barraca então, sem proteção, já estava encharcada. Mateus me disse que tinha espaço na barraca em que eles estavam dormindo.


Depois do jantar dormimos em quatro, três no colchão de ar, um direto na areia. Ao invés de histórias de terror, Mateus foi contando as vezes em que tinha sido pego, que tinha se dado mal. E ele contava tudo rindo, na maior naturalidade de quem não se vê fazendo mal a ninguém. No último dia na mata Mateus só dizia estar com saudades de andar de skate. Junto com Daniel, marcou de passar em casa assim que chegar no centro e já descer para andar no bowl da pistinha da Costeira. Ele tinha até se esquecido que o skate estava na UFSC.




Subimos até o morro da Coroa e quem tinha bateria no celular bateu a famosa foto lá de cima. Eu e o menor fomos descendo na frente. Ele não quis entrar no mar. Talvez não soubesse nadar. Talvez quisesse mesmo ficar fumando na beira da praia, só observando o quebrar das ondas no mar, sentir a brisa no rosto, conversar com outras pessoas... Dali, reencontramos o grupo para desmontar o acampamento e voltarmos para babilônia antes que anoitecesse.


No dia seguinte, segunda-feira, já no estressante ambiente urbano, dentro do campus da UFSC, um segurança veio questionar a presença de Mateus e seu skate ali. Ele disse que não ia parar de andar, nem de frequentar a universidade. Que tinha amigos ali dentro. O segurança se retirou. Foi chamar reforço. Enquanto isso uma menina pediu para andar no carrinho. Quando a caminhonete da Deseg chegou e desceram dois caras de óculos escuros e coletes já era tarde para esconder o skate no CALJ. Os dois seguranças viram a cena, foram até o local e confiscaram o objeto do moleque naquela enorme caminhonete branca. Mateusinho ia falar o que? Para eles foi como tirar doce da boca de uma criança.


No outro dia encontrei o garoto no CALJ, meio abatido, que me contou a história. Tava com a blusa laranja que eu lhe dei no acampamento. Só que o abatimento logo passou quando ele viu que eu carregava no braço um capacete de motocicleta. Mateus pediu o objeto da minha mão e começou a fazer várias perguntas a respeito de minha humilde Honda CG de 150 cilindradas. Disse também que era dia de Batalha da Central, no Campeche, que já tava quase na hora, que não ia dar tempo se fosse de ônibus e me pediu uma carona. Usei a famosa desculpa de estar sem mais um capacete. Mas o moleque não desiste fácil das coisas que quer. Com a certeza de quem acredita nos encontros do universo, ele disse que ia arranjar um capacete e só falou pra eu vir com ele.


Sem saber direito o que ele iria fazer eu fui seguindo-o pela universidade. E pra piorar, aquele horário da noite eu já não conhecia ninguém que viesse de moto. “Ah, tem o Van Diesel ali do Básico!” A gente foi lá e ele chamou o menor de azarado, que semana passada o rapaz tinha esquecido um capacete em cima de uma mesa e só tinha vindo buscar ontem. Mateus não gostou do adjetivo que lhe foi dado, assim como não gosta de ser chamado de menor. Virou pra mim e disse: onde tá sua moto, feio? Vamo lá!


A gente foi caminhando até o CDS, no caminho apenas carros e pedestres. Eu vinha lhe dizendo que se houvesse alguém que só um trabalhador noturno nos emprestaria um capacete aquele horário. Ele abordou um guardinha de amarelo, que disse não ter moto, nem saber de alguém que tenha, mas se mostrou curioso com a história. Vimos que ele também não nos ajudaria, até que passamos pelo centro acadêmico de educação física, onde rolava uma reunião dos professores de atletismo, no piso superior. Subimos e ficando olhando para as pessoas até que elas nos notassem.


Vinha vindo em nossa direção uma moça. Explicamos para ela a história de ir até o Campeche de moto. Só omitimos a parte da batalha. Ela chamou outra moça, com um capacete nos braços, que chegou dizendo estar de saída. Eu confesso que nesse momento já tinha perdido as expectativas, mas o Mateus não, e foi desenrolando com a moça até ela chamar o namorado. Contamos a história para ele também, que dá aulas a crianças e adolescentes na pista de atletismo. Ele abraçou a ideia, confessou ter outro capacete no baú da moto e de quebra chamou Mateus para treinar com ele. O menor só pegou o objeto emprestado e agradeceu. Eu disse que em uma hora estaria de volta ali para devolver o capacete.


Quando chegamos até a moto, estacionada próxima da saída de pedestres do Pantanal, fomos abordados por outros dois guardinhas de amarelo, que nos fizeram várias perguntas e justificaram a abordagem porque éramos ‘suspeitos’. Ficaram ali até a gente sair. No caminho, antes de chegarmos na via Expressa Sul, ele veio me contando que sabia pilotar. Depois, passou a cantar os funks. Chegando no Campeche, insistiu para conduzir. Eu neguei, falei da polícia, que a moto tava com a bateria fraca, que a gente tava quase chegando…


A batalha de conhecimento já estava nas semi-finais quando a gente parou ali, nem dava mais tempo de se inscrever. Ele comprimentou os conhecidos e já foi logo pedindo pros caras uma moeda pro gudang’zin. Ao conseguir R$1,50 a gente foi até a venda, ascendeu e, antes que o cigarro chegasse no filtro, ele me fez um pedido que me deixou desconcertado: pilotar a moto no caminho de terra batida que tem atrás da pracinha onde rolava a batalha de rap.


Perguntei se ele sabia ligar no pé. Ele já subiu e foi tentando. Ligou. Nem precisou do afogador. Acelerou no neutro, olhou pra mim, botou em primeira marcha e partiu. Passou pra segunda. Lá na frente, pra terceira e voltou. Pediu pra andar na pista. Eu neguei, é claro. Argumentei lembrando-lhe de ter um posto policial bem ao lado. Mateus queria brincar um pouco mais nesse brinquedo de gente adulta. Foi até o fim da estradinha e deixou morrer a moto. Penou pra ligar, mas ligou. Veio vindo devagarinho, estacionou onde estava e falou: “bora ver a batalha, feio!”


A final de conhecimento rolou e quem ganhou foi uma mina. Colocaram um som pra tocar, eu olhei a hora e lembrei do cara que emprestou o capacete pra gente. Já ia dar uma hora. Perguntei ao Mateus se ele ficaria pra batalha de sangue. Não. Vamos embora. Na saída ele pediu pra levar de novo. Eu pensei duas vezes e disse para ele que se fossemos pegos a moto iria pro pátio e quem ia se foder era eu. Que não ia ter dinheiro pra tirar, pagar o guincho, essas coisas. Ele não gostou muito, mas foi atrás cantando as músicas do mc Rodson enquanto eu pilotava e fazia a batida de funk com a mão esquerda no tanque de gasolina.


O farol apagou, mas o caminho do Rio Tavares é bem iluminado. Tranquilo. Minha lanterna devia estar funcionando apenas uma fase. Levantei a viseira para enxergar melhor as duas pistas. O ruim são as tartaruguinhas que limitam a mudança de faixa. Permaneci na direita quando vi uma viatura da polícia toda apagada na esquina, pronta para virar. Diminuí a velocidade. Na lombada, passei o carro da frente enquanto o menor me dizia: “É a BOPE! É a BOPE!”. Conferi se meu rosário estava comigo e respirei fundo. Olhei no retrovisor e o carro que eu havia ultrapassado não estava mais lá. Só vi o farol alto dos policiais, que ainda ligaram o giroflex enquanto eu parava a moto na frente do posto de gasolina para tomar o famoso enquadro.


Não deu em nada. Ninguém tinha flagrante, a moto tá certinha, minha carteira também. Mas os caras do Batalhão de Operações Especiais são chatos. Viram que o Mateus tinha passagens por furto de mercado e já começaram a interrogá-lo. Ele falou que roubava chocolate escondido. Mas que agora não rouba mais. Advertência, reparo de danos, prestação de serviços... tudo isso ele tinha cumprido, conforme consta no ECA (Estatuto da Criança e Adolescente). Mas o menor nunca fez parte das estatísticas dos mais de 20 mil adolescentes presos. Aquele dia ele me contou que até teve medo de que fosse pego. Perguntaram onde ele morava, brincaram com o frente do tráfico na comunidade dele, disseram que não iria durar muito.


Foram 15 minutos de perguntas, mão na cabeça e perna aberta. Ainda me fizeram ligar a moto e olhar de perto o farol dela. Um deles dizia com a cara fechada que eu poderia atropelar uma família. Nem discuti. Ouvi aquilo olhando para o fuzil que estava sobre o tórax do outro policial, me perguntando se precisava de tudo isso mesmo. Na volta, Mateusinho me abraçou. Deu risada, agradeceu por não estar com nada. Depois voltou a cantar funk, só que ao invés de putaria, ele cantava agora proibidão: “é que o crime não é o creme, se tu não deves não treme, eu to cansado de kaô, ô, ô, ô”. Ao deixar ele ali no pé da Serrinha, antes de voltar pra minha casa, eu falei: “vê se te cuida ein, mano”. Ele me falou a mesma coisa. Apertou minha mão e me pediu uma moeda pra pegar um Gundang ali no boteco.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Época de eleição


É tanta 'informação' 
que eu fico na dúvida.
Época de eleição?
Prefiro escutar música!

Aprendo muito mais
ouvindo um Racionais,
do que a esses candidatos
de propostas sempre iguais,
das quais já escutei anos atrás.

Mas... pra quê ir lá votar?
Se a justiça é ineficaz!

Nesse país gigante,
com dimensões continentais,
 onde a ordem vence a paz.

Uns querem unidade...
Nos dias atuais
falta é oportunidade!

No Brasil da impunidade
menorzin de pouca idade
já num quer mais ser criança!

Eles mandam militares
para as ruas da cidade
dando falsa segurança!

Nóis se lembra do prefeito,
que antes de ser eleito
usou frase de efeito
pra falar de esperança

Foi aceito no pleito,
estufou o peito,
pra no fim teu preconceito
ser o que restou de herança!

É foda, cansa!
Só que é no interior de nós memo
que começa a tal mudança.


terça-feira, 9 de outubro de 2018

Não passarão

Hoje o dia amanheceu estranho. Chuvoso. Cinza chumbo. Desde que botei o nariz na rua eu senti um ar pesado no rosto das pessoas. Almocei no RU da Med. Veterinária e o assunto entre os corredores não tinha como ser outro: Bolsonaro. Os que ainda possuem um pouco de bom senso, preocupados com o futuro do país, estão se perguntando o porquê!

Por que esse cara? Não é possível que as pessoas estão botando fé num babaca que está há 3 décadas num cargo público em Brasília, sem nunca ter proposto algo de relevante para a vida da população. Eles realmente acreditam (ou fingem acreditar?) que esse patrício vai trazer a mudança que a política nacional tanto precisa? Ah, faça me o favor...

'Será que ninguém enxerga?' eu me perguntava enquanto empurrava a bicicleta na calçada e observava as pessoas. Desci pra pedalar na pista. Quando cheguei na av. Roberto Silveira o semáforo fechou. E a ciclovia fica do outro lado. Começaram a vir os veículos do túnel, então eu continuei indo devagar pelo cantinho direito da via enquanto ainda pensava no resultado das eleições. Mas o fluxo de carros não diminuía... Fui vindo mais pro meio da faixa da direita porque logo ali na frente tinha um busão parado no ponto de ônibus. Havia outras 3 faixas, além da ciclovia e da faixa de ônibus.

Beleza, cortei o busão e segui pedalano de boa, olhando toda hora pra trás para saber o momento exato de atravessar rumo à ciclovia. Só que os carros e motos não me davam nenhuma brecha. Fui diminuindo a velocidade até que um homem atravessou na minha frente e cruzou a avenida. Tentei ir de embalo, mas lá na primeira faixa da esquerda vinha um maluco à milhão. Fiz que fui mas voltei. E logo vi que o semáforo mais a frente tinha ficado vermelho. Olhei pra trás: os carros todos já diminuindo, aquele transitozinho de sinal fechado, né. É agora!

Levantei o braço esquerdo, virei o guidão pra atravessar e quando eu olhei de novo pra trás vinha um taxi cheio de pressa na faixa do meu lado. Como eu tô sem freio só mudei a direção do camelinho de novo, mas não parei. Nem ele. Pra ajudar, tinha um carro mais a frente saindo da calçada e ocupando a passagem na minha faixa.

Estávamos já há menos de 50 metros do semáforo. O taxista buzinou, como se o problema fosse eu na frente dele e não um sinal vermelho. Não tinha necessidade. Eu já bem puto da vida com aquela situação fiquei ainda mais nervoso com a buzinada no ouvido. O sujeito parou o carro do meu lado, roda com roda. Começou a falar de dentro do taxi alguma coisa que eu nem ouvi. E sua passageira ali no carona. Eu abaixei pra ver a cara do cidadão e desabafei:

- Tu não me viu, não? Você é cego? Não tá vendo que tá vermelho essa porra? Tá achando que vai passar por onde? por cima?

Escutei ele esbravejar alguma coisa do tipo 'tem que andar na ciclovia!'. Ô glória... Peguei a bike e passei na frente dele pra atravessar. Ainda falei:

- Tava tentando ir pra ciclovia antes de você quase me atropelar né!

Ele segue olhando pra mim de dentro do carro com uma cara de babaca. Eu encarei de volta e fui pedalar. Quando enfim cheguei na ciclovia e vi ele lá paradão no sinal vermelho confesso que me veio um sentimento de vingança por cima do susto que aquele arrombado tinha me dado, então estendi a mão direita pra ele e o meu dedo médio imediatamente se ergueu.

- Agora fica aí, seu otário!

Respirei fundo. Gritei uns dois palavrões pra tentar me acalmar. Minha vontade era gritar #EleNão Mais a frente crianças atravessavam a faixa de pedestre em direção ao Campo de São Bento. Fui freando com a sola do tenis bem devagarinho até parar na entrada. Ouço então outra freada brusca.

- É caô que você quer arrumar então vamo resolver esse negócio aí!

O cara voltou, parou o taxi ali, desceu do carro e veio pra cima da mim falando alto. Tinha ficado macho com meu dedo do meio. Apesar de bem maior que eu, mantive o mesmo tom de voz dele e não deixei se crescer, não.

- Irmão você jogou o carro em cima de mim, você tá errado cara. Ainda fica buzinando na orelha dos outros. Sai fora!

Ele olhava pra mim na maldade. Continuou falando alto, discutindo, me ameaçando. Não conseguía prestar atenção nas palavras que saíam da boca dele. Nada ali fazia sentido. Não baixei a bola, nem saí de cima da bicicleta. O que ele queria era uma fagulha pra sair na mão. Só que eu não vou ficar brigando com maluco na rua.

Outras pessoas começaram a olhar pra gente e ele recuou. Eu aproveitei, subi a calçada e entrei no parque. O bico ainda ficou falando merda, fazendo ameaças enquanto eu metia o pé. Demoro. O que ele quiser eu quero em dobro. Ainda bem que nenhum de nós anda armado. Se não você num estaria nem lendo essa história, né.


Nós temos apenas 19 dias pra barrar a ascensão do fascismo no nosso país. Faça a sua parte. Fascistas não passarão. Nem por cima.








sábado, 29 de setembro de 2018

Partiu? (não-mais-treta)

Partiu?
 Virar o jogo!
Ganhar a partida!

Se mexer
desligar a tevê,
fechar as aba do tt
e do fb...
ir viver a vida!

Vai, mulekote,
Dis-po-si-ção!
Cê é bem mais forte
Que toda opressão!

O mundo precisa 
É de posição.
Se não, irmão,
Ele te pisa 
E vira depressão.

Onde vencer é uma obrigação, né?
Se desistir cê tá de tiração, Zé

Vai...
Supera sequela,
Não amarela,
Tira tua mente da cela,
Liberdade cantando pra ela.

Partiu...
Siga seu ritmo,
Sempre crítico,
Pois todo ato é político!

Do sotaque que falo
À berma que eu uso
Parsa, não sou conduzido,
Conduzo.

E não vou tolerar abuso no rolê
De quem devia só servir e proteger
E prefere vigiar e punir,
Forjar e omitir,
Errar e fugir...

Partiu,
Mas é pra frente que se tem que ir,
Jamais regredir.

Que a empatia que habita em ti
Possa, enfim, em mim refletir.











sexta-feira, 16 de março de 2018

Ano de eleição ou ano de copa?

Recém chegado no ambiente carioca eu brotei pra ver um pouco do jogo do Flamengo na Liberta, ouvir o som das mina e tomar aquela gelada. Cheguei na Cantareira tava rolando um baile só com dj's mulheres. Tocavam uns funk relíquia tipo Mc Marcelly, Valeska e Tati Quebra-Barraco. Ao redor, tinha uma porrada de vendedor ambulante com seus gorós, chicletes e cigarros; além dos bares e carrinhos de lanche que em suas tvs exibiam o jogo da Libertadores. Bolei um pra entrar no clima. Enquanto isso, lá no Equador, o Flamengo empatava sem gols com o Emelec.

Traguei o baseado, matei a cerveja e deixei a ponta de lado, ali memo onde eu tava sentado. Na praça algumas crianças brincavam, suas mães ali perto, um morador de rua descansando atrás de mim, vários catadores de latinha e os jovens universitários que se divertiam, gastavam grana e usavam suas paradas ao livre. Reparei numa menininha vidrada na tela do celular da mãe. Ela chegou bem pertinho de mim, andando e olhando pra tela, devia estar jogando, distraída, nem percebeu os meus olhares. Assim como eu nem tinha percebido o lance do gol do time equatoriano.

Um silêncio tomou conta do entorno da praça. Poucas comemorações de torcedores rivais. E, na parte que eu tava, a galera parecia bem mais focada em dançar, beber, fumar e girar bambolê. Não colei lá no meio, fiquei de canto, mas deu pra ouvir quando a mestre de cerimônia pegou o microfone para informar às pessoas sobre o assassinato de Marielle Franco e seu motorista Anderson Pedro, no bairro do Estácio, quando voltavam do evento 'Jovens Negras Movendo as Estruturas'.

MARIELLE VIVE!

O carro em que eles estavam foi alvejado por ao menos nove disparos, todos em direção de Marielle,  no banco do carona. Socióloga por formação e cria de favela, ela foi a sexta vereadora mais votada nas últimas eleições municipais do Rio de Janeiro com 46,5 mil votos, pelo PSOL. Recentemente, Marielle havia assumido o cargo de relatora da comissão da intervenção militar na câmara municipal. Ela também havia denunciado o abuso de poder do 41o batalhão da PM, já conhecido pela violência nas operações policiais, que no último sábado matou 2 jovens na favela do Acari.

- Foi mais uma mulher negra assassinada nesse país!

A notícia da execução cortou a energia do baile. E a minha também. Poucas pessoas ainda dançavam quando Vinícius Junior entrou no jogo fazendo sua estréia na principal competição do futebol sulamericano. Logo num dos primeiros ataques o menino vinha marcado carregando pela direita, quando chegou na entrada da área puxou pra dentro, tirou de um, tirou de outro, bateu e a bola ainda desviou na zaga antes de ir parar no fundo das redes. Um golaço que eu só fui ver no replay.

Alô Tite, o garoto é brabo!

De instinto me levantei. Fui ver de perto o que tava acontecendo. Queria saber do lance, como foi a jogada do gol. Parei pra ver a partida, que ficou mais corrida, com mais chances de gol. Vi Dourado perder uns dois gols de cabeça. Depois, num contra-ataque, Diego só ajeitou pro Vinícius bater novamente de esquerda, dessa vez sem desvio, e carimbar a vitória fora de casa. O moleque é bom mesmo.

- Chama ele, Tite! Melhor que o Taisson!

A galera flamenguista do bar riu. Até concordaram. Eu fui tentar acender um cigarro e não achei meu bic, nem tinha mais vontade de continuar por lá, até tocar o Afro Rep do Rincon Sapiência. Pedi um isqueiro emprestado. Se pá eu até avistei o Choice e Coruja BC1 de role ali na Cantareira. Dei um tempo curtindo a música que rolava mas aquela fita da Marielle tava entrando na minha mente. Mano... E se fosse minha mãe, minha vó, minha mina? 

Porra, nem no mês das mulheres uma militante da causa social na política tem sossego no Brasil, onde o feminicídio mata oito por dia. Também, né... Além de ano de copa, 2018 é ano de eleição. E Marielle era uma ameaça pro conglomerado de poder que se estabelece nesse sistema sanguinário. Eles não querem mudança, renovação. Eles querem a quebrada e a pista do jeitinho que tá, porque assim funciona. Pelo menos pra eles.

Não pra nós, irmão. 15 milhões de desempregados, segundo o vendedor de balinha no ônibus que eu peguei indo pra São Gonçalo, um dia desses. Acuados pelo poder bélico do poder público que se diz em nome da segurança. Uma (falsa) segurança seletiva. Só que a galera da praça parecia mesmo estar mais preocupada com a vitória de virada do Mengão na Liberta, justamente o seu time do coração. Afinal, nesse país todo dia morre uma mina preta de quebrada. 

Sua luta não será esquecida, Marielle.

Marielle resiste. Filha de Yansã e Obaluayê, essa guerreira não terá sua passagem esquecida. Assim como tantas outras mulheres de periferia que tiveram suas vidas interrompidas brutalmente. O assassino dela e de seu motorista precisa pagar na justiça pelo que fez. E a investigação deste caso deveria esclarecer o(s) real(is) mandante(s) por trás desta execução cruel. Pois de que vale um título de grande expressão no futebol, se neste país a liberdade é silenciada por meio da bala?

Marielle sempre presente!

Descanse em paz, M.F
aqui a luta continua.