O tempo nublado fez com que não houvesse sol naquela cinzenta tarde de sábado, no centro de Florianópolis. O ensaio do bloco de samba-reggae Africatarina reunia cerca de quinze ritmistas e chamava a atenção dos curiosos que passavam pela Praça XV e pelo terminal velho. Uma porção de pessoas foi se reunindo ao redor da batucada. Mestre Edinho, ao centro da roda de tambores, era quem ditava o ritmo dos repiques, caixas e surdos. Sempre que alguém se aproximava dos ritmistas ele já perguntava imediatamente, exibindo seu costumeiro sorriso:
- E aí, quer vir tocar com a gente?
Uns rejeitam, alegam estarem apenas olhando. E então, antes de meterem o pé, tiram uma foto ou gravam um pequeno vídeo pra postar na rede social. Mas há também aqueles que aceitam o convite do mestre, sempre disposto a ensinar. Tudo ali na hora mesmo, no boca a boca, na simples linguagem oral percussiva, enquanto o ensaio acontece. Se a pessoa pega o ritmo e assimila a batida do instrumento, pronto, eis um novo integrante do bloco.
Já corria uma hora de ensaio quando um sujeito de baixa estatura, vestindo uma camisa desbotada do Grêmio se aproximou e ficou observando o batuque, bem de perto dos instrumentos, quase encostando em uma das integrantes que concentrada tocava sua caixa. Sem interromper o ritmo do samba-reggae, o mestre foi lá e perguntou ao homem com a maior boa vontade se ele queria aprender a tocar. O sujeito negou o convite e permaneceu imóvel, de olhar fixo para as caixas.
O mestre então pediu ao homem que se afastasse um pouco. O rapaz não entendeu, ou se fez de desentendido, e continuou por ali. O ensaio foi interrompido e o mestre então pediu com educação e voz firme para que sujeito se afastasse, pois ‘estava atrapalhando’. Os membros do grupo começavam a perder a paciência com o cara, que com cara amarrada finalmente se afastou um pouco, continuando ali por perto.
O repique chamou, a batucada respondeu, subiu o ritmo e assim o ensaio ia voltando ao normal. O sujeito com a camisa do tricolor gaúcho estava visivelmente embriagado e começou a falar sozinho na praça. E não pareciam palavras lá muito agradáveis. Entre palavras incompreensíveis que ele soltava, o homem bradava que Florianópolis não tem samba, que nunca teve, que Santa Catarina não era terra de carnaval… E que era coisa de baiano, de macumbeiro…
Pra quê, né? Alguns integrantes do grupo ouviram, não gostaram nem um pouco e ficaram encarando o sujeito, que ora se aproximava, ora se afastava. Quando o mestre parou o som para passar uma outra música, o rapaz com a velha camisa do Grêmio aproveitou o silêncio dos instrumentos pra falar alguma outra merda. A galera do bloco nem deu muita bola e o ritmo logo voltou. Um grandalhão mal encarado de camisa regata, que até então apenas assistia o ensaio encostado no muro foi lá tirar satisfação com o homem.
Os dois discutindo e a batucada rolando... Não se ouvia muita coisa entre o toque das marcações, apenas a troca de ofensas e ameaças. O grandalhão disse que se não fosse o ensaio quebrava ele ali mesmo, em plena praça. O senhor gremista, muito menor e mais velho, não demonstrava medo algum e desafiava o gigante do alto de sua coragem etilicamente impulsionada. Na iminência da agressão física o pessoal dos tambores parou de tocar e alguns foram lá pedir calma aos dois cidadãos. O mestre também foi lá conversar com o gigante, ao mesmo tempo que um rapaz que tocava surdo, também grande e forte, foi tirar satisfação com o gremista.
- Fica de boa, fica na tua!
Tudo parecia resolvido. Cada um para um lado. O sujeito com a camisa do Grêmio foi em direção a catedral. O grandalhão rumo à Alfândega. Os ritmistas voltaram a tocar. Mas o grandalhão não quis deixar barato. Aproveitou o momento de distração e se lançou atrás do gremista, que ameaçava ter uma peixeira, escondida. Os dois seguiram discutindo de perto em direção à rua, a 50 metros de uma cabine da polícia. Um taxista foi lá apartar o bate-boca. Os batuqueiros do bloco revezavam olhares entre o rosto de seu mestre e a discussão que se aproximava da rua. De longe, os ânimos pareciam mais tranquilos, realmente parecia que dessa vez ficaria por isso mesmo.
Apenas parecia. O gigante foi até a Alfândega e arranjou por ali uma cadeira velha de madeira, bem danificada. E o senhor, que momentos antes provocara os batuqueiros, agora estava sozinho, próximo a um dos bancos da praça XV. O grandalhão de regata aproveitou o descuido do tiozão, que só percebeu que iria levar uma cadeirada na costela quando a própria cadeira (e os braços do grandalhão) vinham em sua direção. O gremista ainda tentou resistir. Só foi cair no chão na quarta cadeirada. Na sexta, os pedestres que por ali passavam contiveram o gigante em fúria, fazendo com que a sétima cadeirada acertasse apenas o chão da praça. E por lá ficaram. A cadeira e o senhor. O grandão logo saiu fora.
Já o gremista foi se levantando ao poucos, com dificuldades em permanecer de pé. Caminhava mancando vagarosamente. O ensaio, que já estava no final, não teve mais clima para continuar. O tempo estava com cara de chuva. Depois da cena, o mestre agradeceu a presença de todos e pediu para que lhe ajudassem a guardar os instrumentos na Fiat Doblô, estacionada ao lado da praça. Disse também, com um sorriso meio amarelo, que espera que o próximo ensaio seja mais tranquilo.