De greve no trampo e com o aniversário da coroa batendo na porta, quem atendeu foi aquela saudade. Falei pra ela que ia pegar uma carona por meio de um aplicativo que instalei no celular, que já tava tudo certo, a gente ia sair de Florianópolis no comecinho da tarde de quinta-feira, pra chegar em casa de madrugada. Meio receosa, ela pediu para que eu tomasse cuidado no caminho. Não a desobedeci.
O cara da carona disse que já tava a caminho, e eu, como sempre, não tava pronto. Botei na mala as roupas que tavam a vista, tirei o lixo, fechei a casa e fui, de chinelo, mochila na lomba e mala no braço, me arrastando até a rua paralela à Via Expressa, aqui na quebrada mesmo. No caminho até o ponto de encontro ele me ligou, descrevendo outro local, diferente do que a gente tinha combinado. Na real, tinha ficado até mais perto. Só desci a rua e dobrei a direita. O uninho vinho com placa de Caçapava tava lá, me esperando.
Simpático, ele me cumprimentou e me ajudou apertar as coisas no porta-malas. Partimos. No veículo estavam o cara e a mina dele, no banco da frente; e um outro mano, no banco de trás. A paisagem do litoral catarinense ia contrastando com o mato, as casinhas e estradas. O silêncio do carro me fez refletir bastante. Por que será que tem tanto morro? Deve ser formação rochosa antiga, talvez escudos cristalinos... Como o vidro só abre um tequinho, não sosseguei o olhar. Abençoadas sejam as montanhas e pedreiras. Axé, meu pai. Axé na sua morada.
Pedra Branca do Araraquara
A tarde ia passado, e nós ainda estávamos de passagem. Saindo de Joinville, iniciando a serra, ouviu-se um estalo vindo do capô, seguido de fumaça. A temperatura do radiador acionou a ventoinha. O motorista encostou o carro e foi averiguar o que havia ocorrido. Aproveitei para abrir uma bolacha, tomar um ar na muretinha do acostamento da rodovia e trocar umas ideias sobre carro velho.
Parece que arrebentou a mangueirinha. O trânsito ficou intenso na subida da serra, principalmente por causa da grande quantidade de caminhões. E a gente ali, aguardando a vinda de um caminhão-guincho, que levou longos minutos até chegar. Devidamente rebocados até o posto de serviços mais próximo, a missão agora era tentar remendar a borracha quebrada. A noite vinha chegando, e a água não parava de vazar. Enchemos o radiador no posto, enchemos também algumas garrafas pet; e pensamos em seguir viagem. Não rolou. A água tava escorrendo toda.
O mecânico daquele posto tava mais preocupado era com o motor dum caminhão de 5 eixos. Sem nenhuma pressa, ele respondia as perguntas do dono do carro. Disse que isso aí era com o borracheiro. Que por sua vez não estava no posto, tinha fechado a oficina e ido até Curitiba. Tivemos que esperar o rapaz voltar ao serviço. E isso demorou um pouco. Comi minhas últimas frutas e fui dar uma banda a pé, pra esfriar a cabeça, parelha com a temperatura do radiador do uninho.
O borracheiro enfim chegou, olhou o problema do carro e logo foi atrás duma peça, lá dentro da oficina. Trocaram a mangueirinha, que por ser de outro modelo continuou vazando água. Só que agora em quantidade bem menor. Eles tentaram vedar o buraco, apertar, remendar e contar com as garrafinhas. Decidimos partir. Já devia tá rolando o jogo do Brasil contra a Argentina, pelas eliminatórias.
la maledita
E assim a gente foi, de posto em posto, aquecendo e esfriando a parada, até parar para tirar um ronco em São José dos Pinhais. Dessa forma a gente esperava o dia amanhecer para resolver o problema do carro à luz natural e em horário comercial. Era um hotelzinho de beira de estrada, simples, e o mais importante, com altos café da manhã! Deu tempo ainda de ver o jornal matinal, saber que a seleção goleou e que tavam rolando protestos aqui no Brasil, nos Estados Unidos...
Lembrei do Trump, do Gean, do Dória... Foi difícil conciliar com minha vontade de chegar à SP. Antes das oito da manhã a gente meteu o pé na estrada novamente. Agora sim, parecia que tava tudo certo. E eu não era o único apressado dali. Ao meu lado, o rapaz que iria ao show do Guns N' Roses contava que tinha reservado um quarto de hostel e queria chegar logo pra deixar as malas em casa e correr pra fila. Ele pretendia estar na porta do Allianz Parque até as 17h, embora o show só começasse mesmo lá pelas 22h30.
Ele era do Pará. Disse não ter muitas saudades de lá, deixando clara a sua vontade de morar no exterior. O casal dos bancos da frente logo deu andamento ao papo. O assunto da viagem tornava-se, vejam só: viagens; mais distantes, é claro, porque a imaginação não tem fronteiras. Ela voa. E a gente deslizava pelo asfalto, até chegar mais um pedágio. As muitas plantações de banana da Serra do Cafezal me lembram das que eu peguei mais cedo na cozinha do hotel. Eu ainda tinha mais sono do que vontade de interagir a respeito das cargas tributárias pelo mundo.
A densa paisagem das moradias e encostas nas periferias de Itapecerica da Serra, Embu das Artes, Cotia, Osasco e Carapicuíba me distraíam do rock que tocava no rádio e da ansiedade do cara que ia ao show. Parece ter distraído também o piloto, que tomou a direção da rodovia Anhanguera e atrasou ainda mais a viagem. Na chegada à marginal do Tietê, aquela recepção paulistana: trânsito! Bastante trânsito. Não bastasse ser sexta-cheira, era véspera de feriado, e horas antes do show de umas bandas mais famosas do mundo.
O mano do lado tava agoniado. Queria chegar logo, mas tava tudo parado. Apontei a ele alguns ônibus de frente verde, que iam pro terminal da Barra Funda, e expliquei que do terminal pro estádio é um, dois. Ele tava de malas, e havia combinado anteriormente com o motorista de ficar na rodoviária do Tietê, pra que ele pudesse ir ao hostel de metrô. A ideia não se concretizou porque a Barra Funda tava bem mais perto, então ,passando a quadra do Águia de Ouro, ali, a gente dobrou à direita. A quantidade de carros na Marquês de São Vicente era bem menor do que a da marginal, o que não significa ausência de trânsito, mas pelo menos fluía.
Axel Rose e a multidão
Deixou de fluir novamente quando a gente fez o caminho de volta pra cair na marginal e enfim pegar a via Dutra. Mas demorou, viu? Era começo de tarde quando a gente já tomava sol naquele 'anda e para'. Descobri que o piloto tem uma barbearia e viaja à Floripa quase todo mês, pra namorar né. Muitas músicas, promoções, comerciais e vendedores ambulantes depois, nós pegamos o viaduto de acesso à rodovia. O tempo já tinha até fechado, mas o calor ainda era de 38º. Eu, que não tinha almoçado, queria mesmo era um bom banho.
Durante a conversa do casal, encontrei um esboço do meu sotaque. Ele falava meio caipira, carregando o 'r', com aquelas gírias do mato, coisa nossa, né. Ela era bem manezinha, sabes? Puxava o 's', carregava a entonação das frases e adorava usar o diminutivo. Ao logo do Vale do Paraíba a chuva era intensa. Os motoqueiros faziam do viaduto seu grande provador. Chegávamos em São José dos Campos no horário de pico, por isso nos atrasamos ainda mais. Soube depois que chegou a cair granizo por ali. No final, já exaustos, eles discutiram por que ela não conhecia o Mazzaropi, tadinha. E ele, tanso, não havia lido um poema sequer do Cruz e Souza.
Só que aí a gente já tava contornando o letreiro ali perto da Fapi, na entrada da cidade. Pra mudar a vibe do carro ele me perguntou sobre um possível mercado em Pinda para barbearias "assim, mais chique, né". Eu desconversei, disse que tava tudo caro, que preferia cortar meu cabelo na casa de um parceiro. A chuva ainda caía por sobre o para-brisa do uno quando eu apontei a casinha amarela, em frente a árvore. Ufa! Era aquele o banho que eu queria. E ainda nem era meia-noite...
- Manhêeee, cheguei! ãn ãn