O dia começou cheio já. De mudança, a bagunça do quarto vai além do que já é natural. No país então, vish!
Do trabalho, pela tevezinha que tem na agência de notícias eu peguei o final da fala da senadora Kátia Abreu, do PMDB, que por sinal é o partido do nosso novo salvador da pátria... digo, nosso presidente da república, novíssimo em Folha. Olhei pra tela meio desconfiado. Não pelo resultado da votação no senado, que derrubou o mandato petista. O que achei curioso foi ver uma empresária e ruralista, inimiga dos movimentos sociais do campo, ser a voz que se levantava em defesa de Dilma. Seria cômico se não fosse trágico.
Contradições à parte, o golpe foi dado. Noticiado e aceito. Aqui na universidade os estudantes pareciam se preocupar mais com o tamanho da fila do restaurante. E eu, com o tamanho do meu cabelo. Ou com a falta de xampu, sei lá. Parei num salão que eu vi no caminho. Receoso, perguntei pros caras do lado de fora:
- É só pra mulher, ou faz corte de homem também?
- É só pra mulher, ou faz corte de homem também?
Os caras riram e pediram para que me sentasse lá dentro, na cadeira em frente ao espelho. Na telinha ao fundo dava pra ver a testa de Temer brilhar. Ele fazia o discurso de posse. Ao lado da televisão do salão, duas moças cuidavam das unhas de uma cliente. A intimidade as levou ao assunto do dia: o novo presidente.
- Ai, ele é um cara inteligente, né? Se veste bem, tem bom gosto. Agora sim!
- Pois é, entende de direito. Sabe falar. Oh, tá vendo? Não é aquela mulher que num sabe nem falar inglês, nem formular uma frase… Meu deus!!!
- Sem contar que ele tem livros publicados. É um intelectual, tipo o outro lá, como que ele chama mesmo?
- Fernando Henrique? Eu sempre votei nele, amiga.
- Eu também, nunca votei no Lula. Picareta. Olha aí no que deu. Eu sabia! SA-BIA!
Paralelo ao diálogo e à transmissão televisiva, Baiano seguia passando a máquina zero alta no meu cabelo. Ele e o rapaz do caixa eram os únicos homens que trabalhavam no lugar. Cansado daquela conversinha mole das peruas, rompi o silêncio do lado mais próximo à rua:
- E aí, cara. Será que esse Temer vai mudar alguma coisa?
Baiano continuou cortando. Olhou pra tv e disse, meio indiferente, voltando a passar a máquininha:
- Mudar não vai, né. Vão continuar roubando. Mas é gente nova, são outros esquemas agora, né?
Lembrei que Michel Temer não era tão novo assim. São 75 anos. E, além disso, o atual presidente já foi secretário de segurança pública de São Paulo, deputado e presidente da câmara, além de vice-presidente do país, ainda que decorativo, por 5 anos. Macaco velho de cargos público, ratão de Brasília.
O barbeiro Baiano desconversou. Perguntou se eu queria que deixasse mais cabelo em cima, falando que se cortasse muito não ia ficar legal. Pensei em retomar o assunto, falar nos possíveis cortes do “novo” governo, que o Brasil não vai ficar legal assim… Apenas concordei movimentando a cabeça pra cima e pra baixo.
Do outro lado do salão, com a chegada de uma senhora que carregava um bebê no colo, acompanhada de um senhorzinho, que logo se sentou; a política voltou à pauta. Bem vestida, de cordão grosso no pescoço, vestido de marca e botas de pelúcia, com certeza super macias, ela chegou falando de crise com um ar irônico. O rapaz que tava no caixa foi lá aumentar o volume para que elas ouvissem Temer esbravejar com firmeza:
- Se nos chamarem de golpista, diga 'Golpista é você que não respeita a Constituição'!
Deu pra ver no reflexo do espelho a empolgação das mulheres.
- Se nos chamarem de golpista, diga 'Golpista é você que não respeita a Constituição'!
Deu pra ver no reflexo do espelho a empolgação das mulheres.
- Como ele fala bonito, gente! Ahahaha
Baiano diminuiu o tom de voz e cochichou pra mim:
- Bom mesmo era o Lula. Quero ver ter outro igual a ele. Num tem! Que fez mesmo, só ele.
- Ainda mais para a classe mais pobre, né?, continuei
- É verdade. Pode ter o que for contra ele, dizer que é ladrão, mas que ele fez ele fez!
Espero que não desfaçam, pelo menos a democracia, pensei comigo. Do outro lado da cidade, no centro, manifestantes começavam a se reunir em um ato contra o impeachment. A polícia começava a cercar a área. Os trabalhadores começavam a voltar pra casa.
- E aí, Eduardo. Tá bom assim?, me perguntou Baiano.
Porra, cara. O país nesta merda toda aí e tu me perguntando se tá bom assim…
- Tá… Tá sim. Ficou chique, cara.
Percebendo minha fala serena ele ainda tentou me animar:
- Aí é bom que cê pode deixar assim, ou pro lado, ou dependendo também, passar um creminho e botar pra cima, arrepiado, sabe?
- Dependendo do governo, né? hahaha
Por enquanto, meu cabelo tá caído e despenteado. Porém, o pezinho agora tá retinho. A vaidosa semelhança com um Brasil temerário, pós-golpe.