Cola cum Fróis

Escrevo pela necessidade de me livrar das palavras | @_dudufrois

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Das adversidades que lhe fazem enxergar


"A minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas pra mim: silêncio e solidão."
Cecília Meirelles



E nasceu uma criança. Outra dessas aí que nascem aos montes todos os dias. Nasceu com saúde, vigor e muito escândalo. Pinta de gordinha. Talvez não estivesse lá se sentindo muito a vontade quando nasceu. E assim, sem muita vontade, é que ela foi crescendo. Do colo quente ao chão frio. Do leite materno ao Tyrol gelado. Dos pacotes de Pamper´s às roupinhas de marcas em promoção. Sem qualquer escolha, ela crescia e descobria um mundo novo.

Quando a menina saiu pra rua sozinha pela primeira vez, se sentiu livre como nunca. Se viu na pele do seu cachorrinho de estimação quando escapava pelo vão do portão e despontava a correr chacoalhando os pelos, pra cima e pra baixo. Queria ser grande que nem os outros. Queria andar pra lá e pra cá, sem rumo, tal qual os adultos. Na rua a guria ficava atenta a todo tipo de gente que desse na vista. Observava seus passos. Ouvia suas frases, mesmo que não compreendesse a maioria delas. Acompanhava seus atos. No fundo, ela tentava desvendar o pensamento alheio. Ainda não entendia muito bem esse negócio de pessoas.

Já caminhando pelo bairro com certa autonomia, a moça começava agora a guardar rostos e nomes. E alguns trejeitos também. Atenta que só, estava lá quando viu o time da várzea comemorar a vitória ali no campinho do bairro. E também viu quando rolou uma baita pagodeira no bar do Pinguim. Mas a moleca gostava mesmo era de ver gente indo e vindo. Chegando e saindo. De mo-vi-men-to! Não desgrudava os olhinhos da avenida principal. Queria até conhecer a tal da rodoviária, que vira apenas pela telinha da televisão, fascinada.

Como a quebrada da garota era mesmo um tanto movimentada; ela, como toda boa criança, tomara gosto pela rua. E foi na rua que presenciou as sonoras discussões da D. Beti com Seu Célio. Saía até garrafa quebrada. Viu também as frequentes brigas entre moleques mais velhos, assim que acabava o futebol na quadrinha. Já na calçada, num canto escuro, enquanto trepava na árvore, ela viu dois homens grandes e maus romperem o silêncio da noite, vindos em uma moto barulhenta, ainda de capacete, atirarem no primo do Juquinha. E da mureta de sua casa, assustada, a moçoila assistiu quando levaram a bicicleta que seu pai ganhara no bingo, sem ao menos poder correr atrás.

...

A pequena até parou de brincar na rua durante uns dias. Só que não aguentou. Mesmo com tanta coisa errada, embora houvesse quem discordasse disso, ela sabia que a rua teu espaço também. E saiu fora. Se jogou pra brincar na ruas do mundão de novo. Mas agora ela não ia ser só uma menininha. Ela não via mais tudo com a inocência e o brilho no olhar de antes. Não. A jovem olhava a cada um com enorme desconfiança. Olhava nos olhos, sem medo. Quem não a conhecia dizia logo que era puro desprezo, arrogância de gentinha mimada.

Ao contrário dos outros, tinha pé atrás com quem andasse bem vestido, engravatado. Questionava professor, inspetor e diretor; sem medo. Muito sorriso no rosto, pra ela, não tinha erro, era falsidade. Até do irmãozinho mais novo ela desacreditava. E olha que ele não tinha nem oito aninhos. Segundo ela, o moleque aprendera a mentir com a televisão ligada. A tagarela, agora, muito mais ouvia do que abria a boca. Ela não duvidava do que um ser humano pode fazer.

E assim, ao invés de uma visão lustrosa e perfeita da vida, ela passou a enxergar mal. Propositalmente mal. Passou a ver só o feio, o sujo, o marginalizado. Passou a gostar de ver o que ninguém gosta, afinal não se contentava em falar por falar. Em rir por rir. Em olhar só por olhar. Era como se a guria tivesse dificuldades de admirar o que é belo no mundão.

Solitária, a rapariga se declarava contraditória o suficiente para procurar defeitos nos outros. Só que os outros, não. Viam nela um poço de ruindade. Uma mini Geni, no auge de uma desinocência rebelde. Desconfiavam da menina curiosa, inconveniente, que não sabia amar. Não que ela não tivesse amigos. Até juntava bastante gente ao seu redor, principalmente na rua. Só que no fundo, ela corria só. Firme, e só. Conforme se deparava com tal rejeição, tal maldade, sua visão ia captando cada vez mais as contradições de uma rua falsa e desigual. Sua visão agora era turva. Absolutamente rabiscada. E isso a amadureceu de vez. Pra ela, o inferno sempre fora aqui.

...

Ela era, então, pequena só no tamanho, porque já conhecia bem onde vivia. Atitude de gente maior. Cara de mau e um olhar, simultaneamente, sereno e intimidador. Sabia bem o que aconteceu. E tinha ideia do que estava acontecendo. Essa visão comprometida é que lhe deu esse tom cético. Tinha plena noção inclusive de que, acontecesse o que acontecer, pouca coisa ia mudar. A donzela tinha era dificuldades em ver o superficial, o que as pessoas viam junto a ela. Sobre ela. E assim, ela... Ela passou a enxergar além de tudo isso. Com esforço, botou profundidade no olhar. Como se visse até mais longe, dialogasse com as estrelas.

Por viver no mundo da lua, sua rua passou a ser a Via Láctea. E assim ela seguiu crescendo. Não no tamanho, não na ganância, muito menos na vaidade. Cresceu apenas na idade, porque sua alma, inquieta que só, sempre será de moleca. Observadora silenciosa, continuou se misturando com os outros, de visão perfeitamente normal. Se camuflando na multidão. Óculos, pra ela, não adiantavam. A não ser os escuros, em que sentia-se na calada da noite em pleno fulgor da luz solar. Não que isso concertasse sua visão pessimista de um mundo péssimo. Era apenas mais discreta.

A jovem só queria passar despercebido. Enxergava distante, pensava longe... Passou a escrever poesias, sem sequer tornar-se poetiza.